O Japão venceu o vírus sem isolamento? Não é bem por aí
Se você acompanha o que ocorre no Japão, deve ter visto uma notícia rolando por aí: a de que o Japão “venceu” o coronavírus sem quarentena, sem lockdown, sem política de isolamento. O “milagre” japonês, na verdade, é fácil de explicar: simplesmente não houve milagre algum.
O Japão viveu seus piores momentos em abril e depois de um isolamento voluntário aderido por boa parte da população, conseguiu baixar os números de novos casos drasticamente. O estado de emergência, que deveria seguir até o dia 31 de maio, foi revogado na metade do mês na maioria das províncias e no último dia 25, o primeiro-ministro Shinzo Abe decretou oficialmente a volta da “normalidade”, pelo menos do que será conhecido como normalidade a partir de agora.
De fato, não houve o chamado “lockdown”, o bloqueio aderido com rigorosidade em muitos países que sofreram com a explosão de casos da doença, como a Itália e a França. De fato, por causa da promessa das Olimpíadas, o governo japonês demorou para agir e o estado de emergência foi decretado apenas em 7 de abril, depois que Tóquio já estava registrando mais de 100 casos por dia. No mesmo mês, o pico chegou a 700 casos por dia, o que é ainda é bem abaixo da maioria dos países afetados severamente pela pandemia.
Quando a necessidade de entrar em emergência tomou a pauta do governo japonês, Abe disse publicamente que havia um “mal-entendido” com relação ao que o governo poderia fazer.
Por causa de obstáculos que envolvem a legislação do país, o Japão não poderia decretar um lockdown. Simplesmente não poderia multar seus cidadãos por desobedecer a orientação de ficar em casa. Por fim, o sucesso do combate ao vírus giraria em torno de uma única questão: a disciplina e obediência da população.
E essa é a palavra-chave da coluna de hoje: disciplina.
Não, o Japão não venceu o vírus sem isolamento. O Japão controlou, ao menos por hora, o número de casos através da disciplina.
Houve isolamento sim, houve o fechamento de escolas e de comércios, houve o fechamento prolongado de locais de lazer e houve também o sacrifício pessoal de milhares de pessoas que, mesmo durante o feriado mais esperado do ano (a Golden Week, entre fim de abril e início de maio), desistiram dos planos de viajar e voltar para suas terras natais para não desobedecer as orientações de prevenção do governo. Então vamos lá!
DISCIPLINA
É preciso reconhecer que a população japonesa, no geral, é bastante obediente e não seria diferente em uma situação tão emergencial como esta em que estamos vivendo. Desde que entrou o estado de emergência, desde que o governo passou a orientar o isolamento voluntário e o fechamento de estabelecimentos não-essenciais, foi isto mesmo o que aconteceu.
Claro, não foi perfeito. Houve problemas com pessoas que resolveram visitar praia e locais ao ar livre para se divertir na província de Kanagawa (vizinha de Tóquio). Houve um problema enorme com os pachinkos (estabelecimentos de cassino japonês), que aglomeram pessoas em máquinas de caça-níqueis enfileiradas em locais fechados. Muitos desses locais em províncias com mais casos, como Tóquio ou Osaka, ignoraram as recomendações do governo e levaram puxões de orelha diários por isto.
No entanto, de uma forma geral, as ruas ficaram vazias e as pessoas ficaram em casa. O popular cruzamento de Shibuya foi visto quase as moscas durante o feriado. Mesmo na minha cidade (Hamamatsu, na província de Shizuoka), com poucos casos de coronavírus, o centro ficou vazio, a estação principal em um silêncio profundo por vários dias em pleno feriado.
Eu fiz uma matéria para a BBC sobre a província de Iwate, a única sem nenhum caso de coronavírus no país. E adivinhem? Durante o estado de emergência, o comércio também fechou por lá. Os locais de lazer não abriram as portas. Não há um único infectado lá, mas a população não deixou de seguir as regras de prevenção por isto.
Então, se o Japão controlou o vírus, precisamos reconhecer que foi a base de muito isolamento sim e de muita disciplina. Fora os hábitos dos japoneses que favorecem a prevenção, como o uso habitual de máscaras, um contato social naturalmente mais distante.
E por falar em contato social, o que entrou na moda nessa pandemia foi o “nomikai online”. Sem poder se reunir nos bares, grupos de amigos começaram a “sair para beber” online. Isto mesmo. Uma videoconferência em que cada um cuida do seu drink. Se isso não é fruto de um isolamento social em larga escala, eu não sei o que é.
E AGORA, JAPÃO?
O Japão saiu do estado de emergência sem passar por milagre algum. Não teve santo que tenha resolvido o problema e os japoneses estão longe de serem imunes ao vírus (se é que alguém chegou a pensar nisto).
O porta-voz do governo japonês, Yoshihide Suga, disse em coletiva de imprensa na última terça-feira (26) que o país conseguiu controlar os casos, graças aos esforços da população em ficar em casa e evitar os três “mi” como ficou conhecido em japonês: “mippei” (locais fechados), “misshuu” (aglomerações) e “missetsu” (contato social próximo).
Aproveitando o “respiro” que o vírus deu ao Japão, Suga também comentou que os esforços a partir de agora continuam em três frontes: a prevenção, que deve ditar as regras de um novo estilo de vida, o fortalecimento do sistema de saúde e o reforço do sistema de testagem, pensando na possibilidade de uma segunda onda.
A questão dos testes foi o ponto mais fraco do Japão desde o início da pandemia. O governo colocou nas mãos dos centros de saúde do país o atendimento de pessoas com sintomas e impôs regras que dificultaram a realização de testes. De início, apenas quem tinha saído do país ou teve contato com uma pessoa que viajou e indivíduos com febre por quatro dias seguidos podiam fazer os testes.
Mesmo agora, muitas pessoas enfrentam dificuldades na realização de testes e acredito que permitir uma testagem mais ampla, no caso de uma segunda onda, é o que o governo quer dizer quando fala sobre a intenção de reforçar esse sistema.
Esperamos que sim. E que os esforços até agora não tenham sido em vão e que não acabem abafados por uma onda de glorificação ao “milagre japonês” que nunca existiu.