Olá queridas e queridos leitores,
Fevereiro chegou, e enquanto o pessoal no Brasil se prepara para as folias momescas, customizando o abadá e ensaiando a última coreografia das divas do axé, nós aqui na Dinamarca continuamos envoltas em 47 camadas de roupa, com nossos cachecóis-jiboia ao redor do pescoço, e contando os dias para poder se dar ao luxo de sair na rua sem luva. Mas vou dar um tempo na minha síndrome de novela mexicana, de quem sofre hiperbolicamente pelos menores dissabores desse dia a dia de pinguim, e vou contar um pouco mais para vocês sobre uma das coisas que eu mais admiro aqui na Dinamarca: a cultura do “usado”, ou “genbrug”, em dinamarquês.
Já comentei em textos anteriores sobre o alto custo de vida da Dinamarca, o que faz do conceito de poupança algo tão usual quanto um unicórnio de pelagem rosa fúcsia, e também já falei sobre a força da Lei de Jante, um preceito que dita que ninguém é melhor do que ninguém. A combinação destes dois fatores fomentou o surgimento de uma fortíssima cultura de reaproveitamento por todos os países nórdicos, e especialmente na Dinamarca, onde a população é fiel frequentadora de mercados de pulgas, lojas de usados e, cada vez mais, usa a tecnologia para vender e comprar itens usados, de roupas a móveis, passando por brinquedos, barcos, animais de estimação, joias e tudo o que você possa imaginar.
Enquanto no Brasil a cultura do reaproveitamento e do bazar ainda é coisa associada majoritariamente à pobreza ou dificuldade financeira, sendo vista por muitos como uma segunda opção para quem não pode pagar o preço da peça nova, aqui vergonha é pagar mais caro por algo novo quando se pode economizar e fazer um bom negócio optando pelo usado. Raros são os dinamarqueses que irão comprar suas tão amadas bicicletas em versão zero km: em vez disso, eles irão procurar seu meio de transporte nos inúmeros sites voltados para a compra e venda de itens usados, como o popular Den Blå Avis, e vão tentar negociar uma barganha. Igualmente, as lojas da Cruz Vermelha (Røde Kors) são muito procuradas por quem busca roupas, acessórios e peças de decoração a um preço acessível, e os amantes do famoso design dinamarquês adoram garimpar achados nos mercados de pulgas (Loppermarked), nos quais se encontram desde móveis até finas porcelanas da mundialmente reconhecida Royal Copenhagen. E falando em finesse, existem muitos destes mercados de pulgas voltados exclusivamente para artigos de luxo, nos quais sapatilhas Prada dividem espaço com casaquinhos Chanel e vestidos Valentino, todos pré-amados e com um precinho bem mais simpático.
Além disso, a tecnologia trouxe novas ferramentas e novos conceitos para auxiliar a cultura do usado por aqui: aplicativos como Trendsales e Tradono permitem que você compre e venda itens usados ou novos de maneira fácil e acessível, e são recomendados especialmente para roupas e móveis. Já o site/aplicativo Lauritz aposta no conceito de leilões virtuais, oferecendo ampla gama de produtos usados de alta qualidade, como cadeiras Arne Jacobsen ou Finn Juhl, conhecidos designers dinamarqueses. Um outro conceito que se popularizou por aqui é o do “guarda-roupa coletivo”, explorado por sites como Veras Copenhagen, nos quais você paga uma pequena mensalidade e pode trocar suas peças de roupa por peças de outras usuárias, renovando o armário com quase nenhum custo. Já para aqueles adeptos das redes sociais, grupos no Facebook oferecem não só negócios, mas também a oportunidade de conseguir muitas coisas de graça, como móveis, roupas e eletrodomésticos: eu mesma já ganhei e já doei muitas coisas em grupos como Free Your Stuff Copenhagen e Gratis Ting København.
Do virtual para o real, aqui amigos quase sempre reaproveitam móveis uns dos outros, e não estou falando apenas dos estudantes em dificuldades, mas de todas as camadas da sociedade dinamarquesa. Se você caminhar por bairros como Versterbro, em Copenhague, irá se deparar com pequenas cabines de madeira, feitas especialmente para acomodar itens de troca: você deixa lá algo que não quer mais, e pega algo que precisa, como livros, brinquedos e utilidades domésticas.
Bem, eu comecei este post falando em novela, e hoje posso dizer que me considero uma verdadeira “Rainha da Sucata” aqui na Dinamarca: adoro visitar as lojas da Cruz Vermelha, compro e vendo roupas no Trendsales e grande parte dos móveis da minha casa vieram de mercados de pulgas ou de doações. Em muitos casos, comprar “novo” virou minha última opção, e esse diferente paradigma de consumo é sim algo que a Dinamarca deveria exportar: ganha o nosso bolso e ganha o nosso planeta.
3 Comments
Oi Camila,
Estou adorando seus posts. Vim pelo Google porque estava procurando um livro que fala da felicidade dos dinamarqueses e acabei lendo o que você escreveu sobre a vida na Dinamarca, sobre sua inicial depressão, etc.
Tenho que confessar que fiquei com certa antipatia dos dinamarqueses depois de terem sacrificado uma girafa e um leão nos zoológicos para dar aula de dissecação. Pode parecer bobagem, mas além de ser simpática ao direito dos animais,tenho a impressão de que o dinamarquês é frio e se acha superior. Mas continuarei a ler seus textos, porque acho que toda cultura tem algo significativo para ensinar às outras.
bjs
Oi, Camila! Adorei seu artigo. É bacana saber que aí o conceito de usado não se relaciona necessariamente à pobreza. No Brazil, creio que só nas grandes cidades o conceito de brechó já está ganhando um significado melhor. Mas nas pequenas cidades do interior como a minha, brechó tem na sua maioria coisas muito feias e de péssima qualidade. Daí fica difícil não relacionar esses brechós daqui com pobreza e descuidado. Que venha a mudança nas terras de cá também! Abraços!
Oi Lígia!
Muito obrigada pelo seu comentário.
Eu sei que no Brasil, e especialmente nas cidades menores, ainda é difícil encontrar coisas de qualidade, mas às vezes precisamos ter olho clínico e pensar nisso como um projeto. Eu morei muitos anos em Ijuí, no interior do RS, e muitas vezes ia com minha família “garimpar” em brechós. Minha mãe e eu encontramos roupas e móveis em bom estado, mas é claro que isso requer muito tempo e “pesquisa de campo”.
Espero que a cultura do (bom) usado se espalhe pelo Brasil também 🙂
Beijos e até a próxima 🙂