O texto de hoje tem um quê de crônica, já que, assim como o Só Pra Contrariar, eu também questiono essa tal liberdade que temos aqui na Dinamarca. Pega o pandeiro, o cavaquinho e o surdo, e vem comigo explorar a liberdade social da mulher na Dinamarca através da minha experiência aqui.
Tudo começou há algum tempo atrás (“na Ilha do Soooool”). Logo após me mudar para a Dinamarca, um amigo me convidou para tomar um café depois do trabalho. Liguei para o meu marido, dinamarquês da gema, e perguntei a opinião dele, afinal, eu receava que ele fosse ficar incomodado com o fato de sua jovem esposa ir encontrar um amigo que ele mal conhecia. Ele disse que não via problemas, e apenas me perguntou o horário que eu pretendia chegar em casa para ele preparar o jantar.
Pois bem, fui encontrar este amigo, e ao invés de um café decidimos tomar uma cerveja. Papo vai, papo vem, e decidimos tomar mais uma cerveja antes de ir embora (duas cervejas sempre foi meu limite seguro de dignidade e compostura no Brasil, que possibilitava portar-me adequadamente, embora não fosse aconselhável operar maquinário pesado). Nos despedimos e, ao montar na minha bicicleta, senti que estava um pouco mais dionísica do que esperava, e que pedalar em linha reta era uma tarefa desafiante.
Cheguei em casa e lá estava meu marido, com o jantar quase pronto. Eu falo para ele que tomei duas cervejas, e que iria me deitar uns minutinhos no sofá até a hora do jantar. Ao abrir novamente meus olhos, vejo que já é noite, e meu marido está sentado em uma poltrona, com a TV ligada, enquanto um prato de comida está colocado na mesinha da sala de estar, na minha frente. Eu esfrego os olhos e digo “nossa, eu não sei o que aconteceu! Eu só tomei duas cervejas”. E eis que meu marido responde, rindo “sim, eu sei. Você disse isso umas 20 vezes enquanto eu tentava te acordar para o jantar. Eu já terminei de ver dois filmes desde que você deitou no sofá”.
Nascida e criada na mais firme tradição de machos possessivos que só a América Latina sabe produzir, e tendo passado por namorados que surtavam se eu fosse fazer trabalho em grupo com algum outro homem na faculdade, eu estava esperando levar uma mijada colossal do meu digníssimo esposo, que se empenha para fazer o jantar e se depara com uma esposa-gambá, que nem consegue acordar para honrar as horas de esforço na cozinha. Mas não, ele não ficou chateado comigo, não teve ataque de ciúmes ou de raiva, e sim deu risada – como dá até hoje – do acontecimento.
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Sim, minhas caras e caros. Aqui na Dinamarca, os homens costumam ser muito mais tranquilos e dar muito mais liberdade às suas parceiras, que podem sair e se divertir sem ter que ficar prestando contas de cada passo a cada dez minutos, e a recíproca é verdadeira. De fato, é muito comum que casais tenham programas diferentes, cada um com seu círculo de amizade ou colegas de trabalho, e ter amigos do gênero oposto é encarado com naturalidade – e não com passivo-agressividade.
Festas do trabalho raramente incluem os parceiros. “Cadê o Thomas?” é o questionamento recorrente da minha família e amigos do Brasil quando mando fotos de eventos sociais para eles, e sinto que a pergunta vem impregnada de preocupação com minha felicidade conjugal. Às vezes é complicado explicar que, apesar de trabalhar na mesma empresa que meu marido, nós nunca vamos a eventos do trabalho juntos, e que temos vidas sociais distintas, com grupos de amigos diferentes. Além disso, os dinamarqueses são muito honestos com relação a seus sentimentos – o que por muitos é interpretado como grosseria – e não vão hesitar em dizer que não estão a fim de ir na estréia de Legalmente Loira VII com você, ou no batizado da filha da sua colega de Pilates, mas que você pode ficar à vontade para ir sozinha ou com quem bem entender. Eles também não esconderão o fato de que, seja pela razão que for, talvez você não seja bem-vinda nos programas deles, e muitos casais interculturais têm dificuldades em encontrar um ponto de equilíbrio nestas dinâmicas.
Já fiquei incomodada por meu marido ir a algumas festas sem mim, mas conversamos muito sobre isso, e buscamos uma solução que deixe os dois confortáveis. Da mesma maneira, sei que existem circunstâncias que deixariam até meu marido dinamarquês apreensivo, e muitas vezes temos que abrir mão de certos “eus” em prol do “nós”. Contudo, aqui na Dinamarca esse processo é uma via de mão-dupla no qual os dois lados se ajustam, diferentemente do que infelizmente ainda ocorre muito no Brasil, onde a mulher quase sempre tem que abrir mão de sua liberdade mínima em prol da moral, dos bons costumes e da hipocrisia. Existe infidelidade na Dinamarca? Sim! E isso é assunto para um próximo post, mas existe muito menos julgamento pesando sobre os ombros das mulheres que vivem na Dinamarca, e muito mais liberdade para se construir uma relação com diálogo, respeito e igualdade e sem rótulos.
É sexta-feira à noite em Copenhague. Eu chego em casa e meu marido está estreando um novo jogo de tabuleiro com seus amigos. Depois de cumprimentá-los, vou para o quarto, tomo banho, me arrumo, me despeço de meu marido e seus amigos e vou sair com meus amigos. Em um bar, meus dois amigos – homens – me aguardam. Bebemos, conversamos, damos risada, e eu volto pra casa caminhando tranquilamente.
Em toda a noite, ninguém questionou onde estava o meu marido, assim como ninguém se achou no direito de fazer gracinhas quando eu ia pedir uma cerveja no bar. Ninguém me importunou na fila do banheiro, e ninguém me chamou de coisa alguma. Nenhum dos meus amigos se achou no direito de “tirar uma lasquinha”, ou sentiu necessidade de flertar comigo.
Aliás, nenhum deles achou necessário me acompanhar até em casa, e no caminho de volta, ninguém se aproximou de mim simplesmente porque eu estava sozinha. Cheguei em casa e meu marido ainda estava aqui, com seus amigos. Dou boa-noite e vou dormir sem me preocupar com mais nada além de uma possível ressaca no dia seguinte, pensando que tive que cruzar o oceano até achar uma sociedade – e um esposo- que permita às mulheres as mais singelas liberdades.
22 Comments
Seu texto é muito legal, Camila, e serve pra desmistificar a ideia que muitas pessoas têm sobre casais que fazem coisas separados serem infelizes no matrimônio. Respeito e confiança deveriam ser os alicerces para qualquer relação em qualquer lugar do mundo, né?
Beijos
Mujito obrigada, Cris 🙂 Beijos e boa semana!
O preconceito está tão enraizado que não creio ser possível ao povo, compreender esse pensamento.
Não importa se esse raciocinio faz todo sentido do mundo, não nos permitimos repeitar o outro como individuo. Parabéns pelo texto.
Muito obrigada pelo comentário e por partilhar essa reflexão, Libia!
Todo homem brasileiro deveria lêr este depoimento e tomar como exemplo o esposo dessa jovem.
Oi Meire. Muito obrigada pelo seu comentário! Tenho certeza de que meu marido vai abrir um sorriso enorme quando ler 🙂 Beijos
Olá, Camila. É pura realidade o teu texto. Também sou casada com dinamarquês e no início da relação essa “falta” de interesse me incomodava, já que conhecíamos uma realidade diferente sobre expressão de sentimentos no Brasil, mas com o tempo fui me adaptando ao jeito dinamarquês de gostar, cuidar e amar.
Olá Rafaelle, tudo bem? Adorei saber que não estou sozinha!!! No início eu ainda tinha essa ideia de que o homem precisava ter “interesse”, mas sou plenamente feliz com essa forma dinamarquesa de amar 🙂 Beijos
Muito legal o seu texto!! Fico feliz por você ter um marido tão bacana!!! O meu não tem nem um pouquinho dessa tranquilidade toda…. enfim… Obrigada pelo texto!! Boa semana!
Oi Andreia, tudo bem?
Muito obrigada pelo seu comentário. Às vezes é difícil lidar com essas questões em um relacionamento, mas vale a pena investir e buscar solucões. Acima de tudo, você e suas escolhas têm o direito de serem respeitadas. Espero que vocês encontrem juntos um caminho de equilíbrio e felicidade.
Olá, é com pandeiro, cavaquinho e violão que entro nesse bloco da alegria pra comemorar o respeito e a consideracão de como a mulher pode ser tratada, tanto no plano familiar como no profissional, na DK. Parabéns!
Oi Sônia!
Tomara que respeito à mulher dê samba, pagode e axé! Seja bem-vinda ao bloco! Beijos
Camila,
Tudo bem?
Sou sua colega aqui no BPM e quero dizer que gostei muito do seu texto, Parabéns!
Bjs,
Lili
Oi Liliane, tudo bem?
Nossa, fico muito feliz com seu comentário :))))) É muito bom receber esse feedback, especialmente de colegas do BPM. Beijos 🙂
Super bacana Camila…parabéns pelo texto…que sirva de exemplo pra todos!
Muito obrigada pelo comentário, Karol 🙂 Também espero que as pessoas se permitam amar sem ter que dominar. Beijos
Excelente, querida! 🙂
Obrigada, querido!!!! Super saudades!!!
Parabéns Camila pelo o excelente conteúdo do seu texto. Bom saber que em tão pouco tempo de residëncia na Dinamarca vc ja se integrou na mentalidade dinamarquesa. Continue com esses passos?Boa sorte ?
Oi Helen!
Muito obrigada pelo seu comentário 🙂 Na verdade, nesse quesito eu sempre fui um pouco “dinamarquesa”…rsrsrs. Beijos
Amei o texto. Dinamarca me espere … jà to de malas prontas!
Olá Camila, tudo bem?
Queria dizer que adorei os seus textos – li quase todos os posts e achei muito legal o seu jeito simples e com bom humor para contar as suas impressões sobre a sua vida aí – e amei ainda mais quando vi que você também é uma louca dos gatos, assim como eu! =)
Acabei chegando até o site por conta de uma viagem de trabalho que vai acontecer agora para um congresso em Copenhague – que está me aterrorizando – , e foi muito legal ter esses insights da “vida dinamarquesa” a partir do ponto de vista brasileiro. Me acalmou um pouquinho…rs
Obrigada, de coração. Ganhou mais uma fã! =)