O texto de hoje era para ser sobre o dia internacional da mulher (e as passeatas gigantes que acontecem aqui na Espanha), mas mudei o foco depois de pensar sobre tudo o que conquistamos e tudo que ainda temos para conquistar. Não se pode negar que avançamos muito nas últimas décadas (direito a votar e ser votada, dirigir, trabalhar, frequentar universidades, viajar sem precisar de autorização, entrar com pedido de divórcio, etc), mas ainda há um árduo caminho pela frente e um tema que anda sendo amplamente discutido no Brasil (mas já é uma realidade por aqui) é o direito de, em caso de acidente, podermos escolher se queremos ou não ser mães.
A Espanha, apesar de ser um país patriarcal, tem uma cultura bem feminista. Eu não conheço nenhum espanhol, ou descendente que nunca tenha escutado a frase “em casa de espanhol quem manda é a mulher”. A brincadeira tem fundo de verdade e, apesar de ainda existir desigualdade entre homens e mulheres, a sociedade tende a respeitar as mulheres de maneira admirável (pelo menos, sob o meu ponto de vista).
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A história do feminismo por aqui data de finais do século XIX, mais precisamente 1892, com a criação, em Barcelona, da Sociedade Autônoma de Mulheres. O movimento ganhou força nos anos 20, com a ajuda de movimentos de outros países europeus e, em 1931, as mulheres receberam o direito de votar, por exemplo.
Porém, só em 1978, com a publicação da atual Constituição Espanhola, é que as mulheres ganharam direito ao divórcio. O aborto, que já havia sido despenalizado por um curto período na década de 30, voltou a ser discutido nessa época, graças à redação do artigo 15, que diz que todos têm direito à vida. Mas quem seriam todos, nesse caso? Os embriões seriam englobados ou não?
A dúvida foi sendo solucionada aos poucos: primeiro em 1985, com a publicação de uma lei que despenalizava o aborto em casos de violência, risco à saúde da gestante e má formação do feto (mais ou menos como ocorre no Brasil hoje em dia). Recentemente, em 2010, a despenalização do aborto também foi aprovada naqueles casos em que a mulher, simplesmente, não deseja seguir com a gravidez.
O Estado espanhol entende que a decisão de ter filhos e quando tê-los é um dos assuntos mais pessoais que uma pessoa pode enfrentar ao longo da vida e que o poder público não pode interferir sobre esse tipo de decisão. Entretanto, deve garantir as condições necessárias para atender tanto as mulheres que querem seguir com a gestação, quanto aquelas que querem interrompê-la.
Atualmente, a gestante tem direito a interromper a gravidez até a 14ª semana (em caso de uma gravidez indesejada), 22ª semana (nos casos em que haja risco à vida da mãe, ou do feto), ou qualquer outro prazo (quando se detecte doença extremamente grave e incurável, ou anomalia que impossibilite a vida do bebê fora do útero materno).
Casos previstos na lei
O processo para realização do aborto, pelo que pesquisei, não costuma ser muito burocrático, mas deve obedecer alguns requisitos básicos: (i) a gestante deverá ser informada sobre todos os seus direitos, prestações e ajudas públicas de apoio à maternidade existentes, (ii) deverá ser obedecido o prazo de 3 dias desde o momento em que a gestante compareceu ao centro médico informando não querer seguir com a gravidez (e recebeu as informações referentes aos seus direitos) e a realização do aborto.
Caso a gestante decida levar o aborto adiante, o procedimento poderá ser feito mediante cirurgia, ou com a administração de pílulas abortivas – fica a critério da gestante decidir qual dos procedimentos preferirá e, após o procedimento, deverá ser feito uma revisão para garantir que correu tudo conforme o esperado.
Apoio psicológico
É claro que passar por um aborto nunca é fácil. Por mais que a gravidez não seja desejada naquele momento pela mulher, a culpa e traumas que esse tipo de procedimento pode acarretar é gigante e, exatamente por essa razão, toda mulher tem a sua disposição uma equipe de psicólogos treinados, que poderão ajudá-la antes e depois do processo. Essa ajuda está disponível tanto para as mulheres que optam pelo procedimento, quanto para aquelas que sofrem aborto espontâneo (ou proveniente de alguma anomalia fetal).
Além disso, todas as mulheres ao ir ao médico são informadas sobre a existência dos chamados “Centros de Planificación Familiar”, locais que promovem a saúde afetivo-sexual para que as pessoas possam desfrutar livremente de sua sexualidade. Nesses centros, além de palestras educativas (tanto no que diz respeito à saúde, quanto em tema sexual), também são distribuídos preservativos e pílulas de urgência, além da colocação de DIUs (tanto de cobre como de hormônio, também a escolha da mulher e sempre depois de passar por seu ginecologista). O objetivo desses centros é, nada mais nada a menos, do que aumentar a conscientização da mulher sobre seu corpo e suas escolhas (o bom e velho “meu corpo, minhas regras”, sabe?).
O que dizem os números?
É importante falar aqui que, em primeiro lugar, a escolha sobre realizar ou não o procedimento é da mulher e, caso ela decida ter o filho, também receberá suporte do Estado. Além disso, apesar de o aborto ser legalizado, o número de abortos desde a publicação da Lei, em 2010 caiu de 113.031/ano para 94.123/ano, em 2017 (ainda que tenha subido, se comparado a 2016).
E para finalizar esse texto nada leve (mas necessário), tenho uma boa notícia para as mães, futuras mães ou que pensam, mesmo que brevemente, em ter um monte de criança correndo pela casa: a Galicia também tem políticas bem legais para vocês!! Mas isso é história para outro post.
Num mundo onde buscamos ter nossas escolhas respeitadas todos os dias (desde sair com um vestido curto até eternizar nosso DNA nesse mundão), sinto, mais uma vez, que vim parar no país certo!