Uma biblioteca de frente para o mar na Dinamarca e a maior da Escandinávia oferece muito mais do que livros e é parada obrigatória para quem visita Aarhus
Em todo o meu tempo vivendo no exterior, explorar bibliotecas públicas e universitárias sempre foi um prazer nada secreto. Tenho verdadeiro fascínio por livrarias e bibliotecas.
Deve ser coisa de menina pobre que adorava ler e não podia comprar livros. Aliás, o acesso a bibliotecas no Brasil era bem complicado também e sobre isso coleciono algumas histórias.
Portanto, é fácil imaginar a grata surpresa que foi testemunhar aqui em Aarhus a abertura do Dokk1, no mesmo ano em que me mudei para cá.
Misto de biblioteca, espaço de encontro, lazer e até de trabalho, o Dokk1 ainda abriga um centro de serviços do governo para a resolução de questões comuns a cidadãos dinamarqueses ou estrangeiros.
O prédio em si merece atenção. E muita. Com uma arquitetura moderna, antes mesmo de ser inaugurada em 2015, a construção gigantesca na confluência do principal rio da cidade e da baía de Kattegat, parte do sistema do Mar Báltico, já era suficiente para criar grande expectativa.
Nem era para menos. Com seus mais de 30.000 metros quadrados, o Dokk1 ocupa o posto de maior biblioteca da Escandinávia.
A transferência da antiga biblioteca, que ficava num local tradicional no centro da cidade, para as “docas”, faz parte de um plano de revitalização da área portuária.
Os arquitetos que venceram a concorrência pública apresentaram um projeto que explora as belas vistas da baía, integradas a plataformas externas que funcionam como verdadeiras prainhas de concreto, lugar perfeito para se espreguiçar ao sol com um bom livro nas mãos, nos poucos meses em que o astro-rei dá o ar da graça.
A fachada do segundo andar com suas vidraças enormes e as poltronas confortáveis, hoje disputadíssimas, convidam a uma leitura inspirada pela vista do mar.
A biblioteca, como já mencionei, é somente uma parte deste espaço multiuso. E isso ao princípio me incomodava um pouco. Em minha reverência a bibliotecas, me parecia um tanto desrespeitoso fazer dos livros somente uma parte da experiência, como se estivessem profanando um lugar sagrado.
Aparentemente, sou a única a ter tais ideias, porque o Dokk1 é hoje um verdadeiro sucesso.
Só no primeiro ano de existência recebeu 1 milhão e 300 mil visitantes. E em média atende a 3.600 pessoas diariamente, sendo que apenas 10% delas para o centro de serviços burocráticos.
Segundo a própria website do Dokk1, “a biblioteca é um espaço dos cidadãos” e busca ser um centro de conhecimento e cultura. Para tanto, são oferecidos 350.000 itens de mídia para adultos e crianças, dos quais 220.00 são livros. Quarenta e seis mil desses itens, incluindo eBooks, revistas e áudio-livros são emprestados mensalmente.
Se você pensar que estamos falando de uma cidade de cerca de 270 mil habitantes, numa área ‘metropolitana’ de 360 mil pessoas, os números são mesmo impressionantes.
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Tour virtual do Dokk1
No mesmo segundo andar, além da vista linda, há um espaço para crianças, com direito a ‘estacionamento’ para os carrinhos de bebê e salinha especial para troca de fraldas e amamentação.
Há workshops de arte para os pequenos e próximo às prateleiras de livros infantis, ainda é possível encontrar uma caixa com fantasias pra meninada deixar rolar a imaginação e fazer morrer de inveja os adultos.
Um tipo de teatrinho de arena pode acomodar uma pequena audiência para apresentações relâmpago e contação de histórias. E às sextas-feiras, um grupo de mães e pais estrangeiros e dinamarqueses tem encontro marcado para confraternizar e jogar conversa fora, com seus bebês de colo e irmãozinhos.
Há ainda um playground diferentão que ocupa 440 metros da parte externa do prédio. Destaque para uns escorregadores ousadíssimos: um em forma de águia em pleno voo e um urso de 7 metros de altura.
Os pré-adolescentes também foram contemplados. Há uma área de jogos com mesa de ping pong, air hokey, pebolim (totó) e vídeo games.
As rampas que levam ao segundo andar são um capítulo à parte porque podem abrigar performances, exibições e, pelo menos um dia por mês, oficina de conserto de bicicleta gratuito, oferecido por voluntários.
Há, claro, pelo menos dois amplos espaços para estacionar a bicicleta próximo às entradas e desde o fim de 2017 contamos também com o Letbane, um serviço de bonde que tem uma estação em frente ao Dokk1.
Várias linhas de ônibus, aliás, passam à porta e uma caminhada curta leva aos principais pontos do centro da cidade.
Para quem mesmo assim precisa ir de carro, o espaço oferece uma garagem subterrânea com vaga para 1000 veículos, totalmente automatizada, que lembra a cidade dos Jetsons. Você estaciona num “box”, aperta lá um botãozinho e o chão engole seu carro.
Como não temos carro, utilizei poucas vezes o serviço, sempre com carro alugado ou na companhia de um visitante motorizado. E nessas circunstâncias meu caipirismo se revela explicitamente: fico sempre intrigada feito criança quando o carro some.
O bom é que na volta, depois de pagar, eles te informam o número do box em que você deve retirar seu carro. Daí é só apertar mais uns botões e tá lá, o carro ressurge das profundezas misteriosas como mágica. Tudo rapidinho!
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Entre as maravilhas tecnológicas do lugar, adoro o fato de que depois de se obter a carteirinha da biblioteca, uma pessoa pode retirar um livro direto numa máquina que faz o scan das obras automaticamente.
Na devolução, basta pôr o livro numa engenhoca que o leva para uma esteira eletrônica e te entrega um recibinho provando que você restituiu. Para evitar papéis, você pode optar pelo recibo via email.
Do ponto de vista de projeto sustentável, o Dokk1 também faz bonito. Painéis solares ocupam 2.400 m2 do telhado e o sistema de refrigeração reaproveita a água do mar. A maior parte da iluminação utiliza lâmpadas LED.
A acessibilidade e a diversidade de público são outros aspectos muito interessantes. Os três andares podem ser alcançados por rampas ou elevadores e os corredores amplos facilitam a vida dos cadeirantes. Há também alguns sinais sonoros especiais para pessoas com baixa audição.
Há eventos para gente de todas as idades. Eles informam que entre 80 e 100 eventos são realizados todos os meses por lá (60% deles em parcerias com organizações das mais diversas).
E se no terceiro andar há espaços que podem ser alugados por pequenos empresários, há mais de 60 computadores pessoais que podem ser usados gratuitamente e bancadas com cadeira e ponto de eletricidade, onde é possível trabalhar, fazer deveres de escola, carregar seu laptop e usar o wi-fi gratuito.
Quando o burburinho incomodar, é possível reservar pequenas salas envidraçadas no andar térreo. São gratuitas, portanto concorridas, mas permite privacidade sem isolamento.
Para fechar todas as atividades, é possível uma parada no café. Há mesas dentro e fora e nessas últimas é comum ver pessoas levando seus próprios lanchinhos.
O escritório de arquitetura Shmidt/Hammer/Lassen descreve o projeto como um ponto de encontro multicultural, que representa uma nova geração de bibliotecas híbridas.
Confesso que apesar de todos os recursos, gosto mesmo é de andar em meio às estantes com vagar, escolhendo os livros para o mês. Infelizmente, ainda não leio em dinamarquês, mas há um bom número de títulos em inglês e alguns em pelo menos seis outras línguas, entre elas uma pequeníssima seleção em espanhol, francês e italiano. Nada em português, por enquanto.
Moral da história: se vier à Dinamarca, não se esqueça de Aarhus e se chegar até aqui, a visita ao Dokk1 é obrigatória. Garanto que a frase de J.K. Rowling “Em caso de dúvida, vá à biblioteca” nunca fez tanto sentido.
Crédito da foto: Adam Mørk/Dokk1
2 Comments
Realmente, a biblioteca como parte desse monumento de concreto e madeira onde abriga várias funções, tanto de lazer como serviço público, é um belo refúgio em Aarhus. Muito boa sua descrição, adorei.
Valeu, Sonia! Abraço