Igualdade de gênero e direitos da mulher na Alemanha.
Em dezembro de 2015 o Fórum Econômico Mundial publicou o Índice Global da Igualdade de Gênero (Global Gender Gap Report) anual. Trata-se de um estudo que classifica 145 economias ao redor do mundo de acordo com a paridade entre homens e mulheres em diversos setores, tais como política, saúde e educação. Por pouco, a Alemanha não chegou ao top 10, recebendo a 11ª posição no ranking – o Brasil, por outro lado, amarga o 85º lugar.
Mas, afinal, o que igualdade de gênero na Alemanha realmente significa e quais são os desafios da mulher alemã na atualidade? Discuto aqui, breve e resumidamente, a situação da igualdade de gênero e direitos da mulher no país. Para começar, porém, quero abordar a longa luta da mulher alemã por seus direitos.
Séculos de luta
Muitos direitos que hoje consideramos óbvios e inegáveis foram, na verdade, conquistados à base de muita luta e de muitos anos. Seja para entender e combater as desigualdades ainda existentes ou para respeitar e apreciar os direitos atuais, conhecer a história da Frauenbewegung, o movimento das mulheres, é fundamental.
Por muito tempo, as atividades da mulher burguesa alemã eram limitadas a três “Ks”: Kinder (filhos), Küche (cozinha) e Kirche (igreja). Apenas com a chegada do século 18, o “Século das Luzes”, ela começou, lentamente, a sair do ambiente doméstico para ganhar o espaço público. Em parte, isso ocorreu graças aos ideais iluministas: a mulher burguesa deveria ser instruída e educada.
No começo do século 19, foram fundadas diversas Frauenvereine, as associações de mulheres. Durante as guerras de libertação, surgiram as Frauenhilfsvereine, cujos membros trabalhavam em hospitais, costurando uniformes para os soldados e participando de atividades de coleta. Somente com as Revoluções de 1848, as associações começaram a se engajar politicamente.
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Em 1865, surgiu em Leipzig a primeira associação de educação para mulheres. Até então, as poucas escolas estaduais para mulheres tinham o objetivo de educá-las para o casamento, não para uma profissão. Com a Primeira Guerra Mundial, iniciada em 1914, a presença das mulheres na força de trabalho se tornou, mais que desejada, necessária.
No período pós-Primeira Guerra, conhecido como República de Weimar, as mulheres conquistaram o direito ao voto passivo e ativo. Logo, a imagem da nova mulher alemã ligou-se a três diferentes “Ks”: Konsum (consumo), Kultur (cultura) e Kino (cinema). Quase um terço das mulheres casadas entrou para o mercado de trabalho e começou, assim, a conquistar sua independência.
A chegada do Partido Nacional Socialista ao poder em 1933 acarretou em grandes retrocessos nos direitos das mulheres. Para os nazistas, cada gênero tinha tarefas específicas, sendo, portanto, fundamentalmente desiguais. Dessa forma, as mulheres foram retiradas do espaço público e retornaram ao ambiente doméstico. Seu âmbito de atuação foi reduzido a atividades do lar e à criação de crianças que, futuramente, deveriam formar a comunidade nacional alemã.
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Apenas em 1949, quatro anos após o término da Segunda Guerra, a constituição alemã declarou, no Artigo 3, que “homens e mulheres são iguais em direitos”. A partir de então, a mulher alemã conquistou cada vez mais espaço na sociedade, no mercado de trabalho e na política. De fato, esse é um tema bastante fascinante e extenso, sobre o qual não posso me aprofundar mais neste momento. Aos interessados, porém, recomendo a página da Agência Federal para a Educação Cívica sobre o tema, disponível apenas em alemão.
A situação atual na Alemanha
Atualmente, a questão da igualdade de gêneros e direitos da mulher é bastante presente na sociedade alemã. Diversos temas sobre o assunto são discutidos intensamente e, de uma forma geral, o objetivo é criar uma sociedade mais igualitária e justa em direitos e possibilidades para tod@s. A seguir, apresento, brevemente, alguns pontos importantes que cercam essa discussão.
- Representação política – a participação das mulheres na política alemã aumentou muito nas últimas três décadas, culminando com a ascensão de Angela Merkel ao cargo mais poderoso do país. Porém, a política alemã ainda é dominada por homens.
- Mercado de trabalho – poucos países da União Europeia contam com tantas mulheres no mercado de trabalho quanto a Alemanha. Entretanto, as desigualdades aqui ainda persistem: as mulheres ganham 22% menos que os homens, assumem mais posições de meio período e são responsáveis sozinhas, com mais frequência, pelo sustento dos filhos.
- Maternidade – a Lei de Proteção à Maternidade (Mutterschutzgesetz) é uma das conquistas da mulher trabalhadora. Criada em 1952, ela ainda passa por muitas alterações e críticas, porém assegurou importantes direitos, como a licença-maternidade e a bolsa-maternidade.
- Direito ao aborto – o aborto é permitido em três ocasiões: a) por desejo da gestante – para isso, ela deve obrigatoriamente participar de um aconselhamento psicológico e social (Schwangerschaftskonfliktberatung); b) por razões médicas, em que a vida da gestante corre risco; c) por abuso sexual – se a gravidez for decorrente de um estupro.
- Língua – até mesmo o idioma é considerado uma das linhas de frente no combate à desigualdade de gênero, sobretudo no âmbito acadêmico. Aqui, o importante é buscar uma linguagem neutra, sem priorizar formas masculinas ou femininas. Artigos científicos e acadêmicos devem procurar usar uma gendergerechte Sprache, isto é, uma língua igualitária com os gêneros.
6 Comments
Estive observando o ranking mencionado e o resultado faz-me pensar que a metodologia deve estar, no mínimo, equivocada. A motivação para isso reside justamente no posicionamento do Brasil em 85º e, entre outros, os Estados Unidos em 28º. Não que eu ache que o nosso país seja um paraíso para as mulheres, muito pelo contrário, mas, penso que, no mínimo, as mulheres americanas enfrentam a mesma situação que as brasileiras. Senão vejamos: No Brasil, as mulheres tem direito a aposentadoria 5 anos antes que os homens (tanto no critério “tempo de contribuição”, sendo exigido 30 anos, contra 35 para homens, como “idade”, sendo permitido 60 anos às mulheres e 65 anos para homens). Nos EUA, e na maioria dos países acima do Brasil no ranking, não há qualquer privilégios às mulheres em critérios de aposentadoria. No Brasil, as mulheres tem garantido 6 meses de licença maternidade com remuneração integral paga pela sociedade (o INSS paga o salário da segurada), sendo que a mulher trabalhadora fica totalmente estável no emprego a partir do primeiro dia da gravidez até 6 meses após o nascimento. Nos EUA, e na maioria dos países acima do Brasil no ranking, isso é impensável. Nos EUA, a mulher anuncia que está grávida e pode ser demitida na mesma hora sem receber nada mais por isso. Além disso, nos EUA, a mulher só tem licença para ir parir e tem de voltar a trabalhar o mais urgente possível, não sendo garantido nada. No Brasil, mulheres gestantes e com criança de colo, tem prioridade (garantida por lei) em filas de qualquer tipo, estacionamentos e em transporte público (pode até não ser respeitado, mas ela pode brigar, que ganha o lugar). Nos EUA e em quase todos os países acima do Brasil no ranking, isso é impensável. Nesses países, mulher grávida só ganha lugar em fila e transporte se o homem sentado for um gentil cavalheiro. No Brasil, é garantido por lei a existência de creches públicas (embora, na prática, isso nem sempre seja obedecido por nossos dirigentes), garantido por lei o período de amamentação, garantido por lei a isonomia salarial para funções idênticas (é só comprovar que a Justiça do Trabalho dá ganho de causa imediato à mulher que recebe menos em funções idênticas na mesma empresa). Nos EUA, essas garantias são nebulosas, depende de acordos sindicais, e nem existe Justiça do Trabalho ativa que garanta alguma coisa. Enfim, se o Brasil não é o melhor dos mundos para as mulheres, os EUA estarem 57 posições acima do Brasil nesse conceito é, para mim, algo que desqualifica por completo essa pesquisa.
Olá, Francisco,
obrigada pelo comentário e pelas questões levantadas. Sem dúvida, é importante refletir na forma que estudos e rankings são produzidos.
Abraços,
Catia
“Séculos das Luzes” ????? O que foi isso? Esta nome só me remete ao século 18. rsrsrs
Olá, Ana,
exatamente, o “Século das Luzes” é o século 18. Essa é uma maneira comum de se referir a esse século. Acredito que venha do francês, Siècle des Lumières. De toda forma, o Google pode trazer mais respostas sobre o termo, caso esteja interessada.
Edit: Entendi que havia um equívoco no meu texto, ao qual você poderia estar se referindo, e o corrigi de acordo. Vale a pena apontar erros de forma mais clara, afinal queremos criar aqui um espaço de informação e discussão com nossos leitores. De todo modo, obrigada pela ressalva.
Olá Catia! Sobre a questão do idioma alemão passar por uma “igualdade de gênero”, como isso funciona? É semelhante a língua inglesa (por exemplo, “teacher” pode se referir tanto a professor quanto professora), ou funciona de outra forma? Muito obrigado pelas informações.
Oi, Elias,
obrigada pela pergunta. Muitos substantivos alemães, assim como os portugueses, têm formas masculinas (professor = “Lehrer”) e femininas (professora = “Lehrerin”).
Sabe como em português nós usamos o masculino de modo geral, mesmo quando há mulheres? É isso que a “gendergerechte Sprache” quer evitar. Então, em vez de falar “Die Lehrer (masc. pl.) sind nett” (Os professores são simpáticos), usa-se “Die Lehrerinnen (fem. pl.) und die Lehrer (masc. pl.) sind nett” (As professoras e os professores são simpáticos).
Há outras formas de indicar que o substantivo embarca tanto homens quanto mulheres, como “LehrerInnen”, “Lehrer_nnen”, “Lehrer*nnen”. Também há maneiras de neutralizar a língua, como “Studierende” (estudantes, pl. genérico) em vez de “Studenten” (masc. pl.). Se você entender alemão, confira o link que deixei no artigo para mais exemplos!