Como é viver em Cuba no atual cenário político mundial.
As tensões entre Brasil e Cuba , EUA e Cuba são sentidas por nós, como residentes em Havana. Eles nos perguntam o que acontece com o Brasil, existe uma ansiedade por notícias de qual será a próxima medida tomada pelo governo de ambos os lados. A animosidade está acirrada. Não conosco que residimos aqui, mas sim com o que possa vir da política.
A vida tá mais difícil esse ano por conta do medo da escassez. É um medo que os próprios cubanos passam para nós, por razões históricas vividas por eles. O chamado “período especial”.
O “período especial” é um eufemismo para descrever um período muito duro para a economia cubana, na década de 90. A queda da União Soviética, seu maior parceiro econômico e comprador de seu açúcar, representou uma crise que abalou a estrutura financeira e emocional da sociedade cubana, que já era complicada pelo embargo que os Estados Unidos impõem contra a ilha desde 1962, que impede o comércio com Cuba.
As medidas de austeridade durante os anos 90, como racionamento de comida e petróleo, levaram vários cubanos a se lançarem ao mar, em balsas e pneus, fugindo da fome, da falta de produtos básicos de higiene, cortes de energia, e do medo da morte.
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Momentos de caos que a sociedade cubana atravessou com muita dor, força e resiliência. Cuba era totalmente fechada e teve que se abrir ao turismo para sobreviver. Mas, neste período de absoluta falta de tudo, o turismo trouxe dinheiro e gente para se compadecer pelos que sofriam aqui.
A guerra fria imposta pelo seu vizinho inimigo, o qual usava estratégias como a política dos “pés secos e pés molhados”. O que era isso? Permitia aos cubanos que chegavam ilegalmente e que tocassem solo americano, receberem o asilo imediato, com documentos legais e todo tipo de apoio humanitário. Não estavam sujeitos à deportação. Coisa que não acontecia com nenhum outro imigrante de outra nacionalidade.
Mas, os que estavam com os “pés molhados”, ou seja, que não chegavam a pisar em solo americano, mesmo que a alguns metros da margem, seriam enviados de volta a Cuba. Essa medida foi retirada pelo Barack Obama, como parte do histórico reinício de relações diplomáticas entre Washington e Havana, agora diminuídas com a chegada de Donald Trump no governo.
Nessa época, as televisões mostravam imagens dos cubanos chegando montados em embarcações feitas de qualquer produto que encontravam, pneus, e outros perdidos no mar, muitas crianças e pessoas desesperadas, correndo desde a margem para tocar em solo americano e ter seu direito garantido.
Os atletas fugiam das competições nos países em que participavam para tentar um exílio e sobreviver à época mais difícil de se viver em Cuba e poder garantir um mínimo de condições de vida à sua família. E muitas pessoas que não conhecem Cuba, ainda tem essa imagem na cabeça. A situação do país atualmente é outra, ninguém passa fome.
Houve muita resistência da sociedade cubana, havia propagandas de comidas em frente à embaixada americana, enquanto grande parcela da população não tinha o que comer. Existe um monumento com inúmeros postes em que se alçavam bandeiras para tampar essas imagens de comida.
Há consequências até hoje, como o “roubo” de sobrevivência. Que começou nesta época e até hoje se manifesta como um aprendizado adquirido pela estratégia de sobrevivência. Furtar um shampoo do hotel onde se trabalhava, sabonete, toalhas, pão e itens de primeira necessidade não é sinônimo de desvio de caráter, é resistir. Principalmente, se for do estado. E o próprio reconhece que isso acontece, sobre tudo com combustível ou materiais de construção, e está tomando medidas corretivas.
Além, em todos os lugares o turista é visto como possibilidade de se obter algo que lhe falta e dinheiro. O turismo é agora uma das maiores fontes de ingresso de Cuba, com o apoio da União Europeia, que tem se convertido em seu maior parceiro comercial. Tem investimentos privados que são evidentes nos restaurantes, hotéis na Havana Velha, praias paradisíacas e empreendimentos.
Mas o bloqueio de Washington continua e o governo de Trump tem planos de aplicar uma lei para que os tribunais federais possam ser usados para demandar a Cuba e às instituições (ainda estrangeiras) que se beneficiem com o uso de propriedades ou imóveis que foram nacionalizados pela revolução cubana em 1959. Isso tem incomodado os investidores.
No atual cenário político, o grande parceiro, que é a Venezuela, está em uma situação complexa. Ela paga pelos serviços médicos cubanos e fornece combustível, mas cada vez é mais difícil. Isso tem complicado a liquidez de Cuba, que agora passa apertos para adquirir mais rapidamente alguns produtos.
Cuba é uma potência em estratégia política e em resistir. A resistência e o resolver são palavras muito fortes que está no DNA do cubano.
Em Cuba, é importado quase a totalidade dos alimentos que se consomem. Dada a complicada situação econômica da ilha, que ainda está reformando sua economia para fazê-la mais aberta, a intermitência no abastecimento é permanente, já seja por atrasos nos pagamentos ou pelas dificuldades do bloqueio.
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A escassez e a falta nos abastecimentos de produtos de primeira necessidade dentro da ilha, ainda é um fantasma que assombra tanto a nós, expatriados, que não estávamos na resistência do “período especial”, quanto a sua nova geração que não presenciou, mas que até hoje escuta as histórias contadas por seus pais, avós, tios, vizinhos, humoristas… Enfim, é presença forte nas famílias e nas consequências, como a diminuição de estatura, o envelhecimento do país, a quantidade imensa de familiares que vivem em outros países. Tudo remete a esse momento.
E quando nós, que estamos alheios à história, nos deparamos com o medo da falta, que é intrínseco neste país, compartilhamos do mesmo medo. E por muitas razões, uma delas, o primeiro conselho de quando nós imigrantes chegamos é : faça sua dispensa, armazene alimentos, compre um freezer grande. E além dessa, outro motivo é não encontrar vários itens da lista de compras, ou poder comprar quantidade limitada de frango, como por exemplo, 2 pacotes por pessoa. Filas imensas em supermercados. A quantidade de lugares que se deve ir para comprar o básico para uma casa, uma verdadeira peregrinação.
Como disse anteriormente, esse ano, sinto isso mais forte, a sensação de falta, apesar de ainda não ter passado por isso. Cada dia está um pouco mais complicado, tal mercadoria permanece sumida da praça por mais tempo que no ano passado. Sinto uma incerteza no ar. Pode ser só uma histeria geral ou um fantasma que de vez em quando assombra a ilha.
A vida na ilha é muito prazerosa e cheia de vivências únicas e inusitadas, mas, mesmo em lugares mágicos, também existem suas doses de dor, dificuldades e cicatrizes que não foram curadas.
É resistir, é vencer.
A resiliência é um dos aprendizados mais substanciosos de ser viver em Cuba.
2 Comments
Oi, tudo bem?
Você ainda mora em Cuba? Como foi o processo de mudança e para conseguir residência?
Olá Pedro,
Infelizmente a colunista não mora mais no país, mas mudou-se para o Panamá. (Por enquanto, ainda não temos outra colunista em Cuba).
Obrigada pelo seu comentário e continue nos acompanhando.
Equipe do BPM