Viver sem comerciais de televisão, sem propagandas em outdoors, sem o apelo de mídias, em geral, te instigando para comprar algo ou comer algo; passear pelas ruas sem painéis com modelos lindas usando grandes marcas, pelos mercados e lojas que não possuem nenhum chamariz de ofertas ou liquidações; não ter disponíveis shoppings que te fazem esquecer se está de dia ou de noite, não ter nenhum influenciador fazendo parceria ou publicidade com alguma marca; não ver um bando de adolescentes passando com o mesmo estilo de roupas ou patricinhas e playboyzinhos desfilando com o último grito da moda; sem anúncios de beleza e tratamentos estéticos mostrando inúmeros tratamentos para te fazer sentir melhor; pessoas ostentando carros luxuosos, mansões, e presentes caros. Enfim, não ter essa exploração constante do mundo consumista.
Em Cuba existe uma sociedade de consumo? Sim!
Mas essa sociedade que também é consumista tem muitas diferenças de uma sociedade de consumo como vocês estão acostumados.
O que mais foi estranho pra mim, em um primeiro momento, foi a ausência de placas , cartazes indicando lojas, supermercados, farmácias. Era difícil encontrar esses lugares porque aos meus olhos não eram lugares que eu identificava como algo comum, que eu já conhecia como indícios de lugares relacionados ao comércio. Por muitas vezes achei obscuro e estranho, como se estivessem escondidos porque não estavam caracterizados como eu costumava enxergar. A grande maioria deles não está identificada por um nome de marca e sim pelo endereço ou nome do edifício ou rua onde está localizado. Sem alardes ou grandes exaltações às compras, simplesmente existem ali e você entra sem se sentir induzido a comprar nada, geralmente, entramos procurando se existe algum item da lista de compras para as necessidades da família, e não para supérfluos ou algo que me encheu os olhos de desejo consumista.
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Outra coisa que ao meu ver é bem diferente foi a maneira que os vendedores tem ataques de sinceridade, como por exemplo, fui a um lugar chamado “ferreteria” que seria algo como um local que vende “multicoisas” para arrumar sua casa. Enfim, chegando nessa loja, que descobri por acaso, fui entrando e perguntando à vendedora se existia algum tipo de cola para arrumar uma peça que estava quebrada em minha casa, ela fez uma cara como se eu não fosse ter sucesso na busca e me pareceu que não estava muito disposta em ajudar a encontrar uma solução para o meu problema. Então, eu perguntei sobre uma arma de cola quente que se encontrava exposta no balcão. Aí foi minha surpresa, ela simplesmente disse: Não compre, não. Eu não entendi nada. E mais uma vez insisti, por favor, quanto custa? E, mais uma vez, ela foi enfática: Já disse pra não comprar isso não. Tive vontade de rir ou olhar para os lados pensando ser algum tipo de brincadeira. Vendo minha cara, ela se explicou: Essa arma é péssima, ela esquenta muito e teve até um caso de que pegou fogo na mão de uma pessoa, por isso te digo para não levar. Eu agradeci o conselho e fui embora sem levar nada.
Às vezes dá uma sensação de vazio, de falta do que fazer, que a gente sempre preenchia com o consumo ou com a vontade de obter um item muito visto nas ruas e outdoors que nos incentivam ir ao shopping; comprar vários objetos de desejo, comer aquela comida, daquele restaurante, e gastar e consumir e se sentir feliz assim, e nem nos damos conta ou não nos importamos ou simplesmente não pensamos sobre a manipulação que realizam na nossa cabeça antes da compra. E saímos felizes, alegres e saltitantes como crianças com presentes de Natal. Aqui não existe shopping como aí, as pessoas se divertem e preenchem seu vazio, sua necessidade de diversão de outras formas.
A televisão é a grande estrela na hora da distração, as novelas brasileiras fazem muito sucesso. Mas além das novelas, quero dizer que a televisão daqui tem programas como educação financeira, batalhas de trompetistas, pianistas, cantores, bailarinos, filmes típicos de nível de centros culturais como o CCBB. É impressionante que entre todos esses programas não existe um único comercial de nada. Nenhum produto é anunciado. O mais inusitado para mim foi ver uma pessoa comentando sobre o filme que passará em seguida. O apresentador relata a sinopse do filme e te convence a assistir mesmo. E, também, sobre a alta qualidade dos músicos que se apresentam nos programas de batalha. Aqui é o país dos médicos e dos músicos. E o melhor de tudo é que nem precisa esperar a propaganda passar porque não tem.
É bem interessante perceber que a falta desse consumismo e de direcionamento de grandes marcas dá uma liberdade criativa na moda e na maneira de se vestir da sociedade cubana que é muito peculiar. Claro, também, associada às carências, gera um desprendimento de arquétipos e modelos pré-concebidos que ajuda a construir algo realmente novo. Cada um cria sua própria maneira de ser e de se vestir sem preconceitos.
A única coisa moldada e igual para todos de vestimenta são os uniformes escolares e a obrigatoriedade de usar branco de alguns praticantes da religião de matriz africana, aqui denominada “santeria”. Me sinto mais livre aqui para me vestir, ousar, sem medo de me permitir soltar minha identidade, minha individualidade. Entretanto existe muita influência de Miami , marcas como Supreme é vista aqui, é trazida por familiares como presentes ou para ser revendidas, não estão totalmente fora desse universo consumiste, mas é mais difícil para chegar, mais caro, portanto, o grande forte é a improvisação com recursos disponíveis. E não é só nas roupas, mas nos cabelos também. Os cubanos são bem vaidosos e ousados na hora de se produzir.
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Eu senti a minha mudança quando fui ao Brasil depois de passar uma ano em Cuba, sem conviver com tanto consumo. Eu me lembro de ouvir um colega dizer que tinha como propósito, um que marcaria a sua história como evolução, comprar pra si um objeto do seu desejo que nunca pode fazer. Aquilo me provocou uma reflexão imensa sobre como o meu consumo havia mudado, e a minha relação na questão do valor e da importância do consumo em minha vida. Somente entendi depois porque já não mais teria uma bolsa de marca, como prioridade e objeto de desejo. Meus desejos são diferentes agora e o meu consumo também.
Não ser bombardeado cotidianamente com mensagens, produtos e arquétipos de beleza te dão uma sensação de vazio em um primeira momento, parece que falta um direcionamento, se sente um pouco perdido, e vai evoluindo para algo maior ou para uma carência e sensação de falta, que bate forte, e é necessário ter uma boa estrutura psicológica para aguentar e não buscar refúgio pela busca incessante de produtos alimentícios, obras de arte, idas a Miami, com o objetivo de saciar essa falta. Nos deixa com uma sensação de isolamento. Como se não estivéssemos fazendo parte de um contexto mundial.
O ser humano é um ser social e sempre tem a necessidade de pertencer. O consumo nos ataca neste ponto. Comprar um tênis de marca, uma bolsa, uma calça, é entrar em uma casta, é estar associado àquele contingente que usa os mesmos produtos. E aqui você por mais que traga suas coisas, seu armário, suas bolsas de marca, vai estar em um outro contexto. Uma nova realidade que já não combina e nem cola mais essa estratégia. E ,por fim , terá que se reinventar. Porque Cuba é Cuba e não existe nada parecido com aqui para se sentir familiarizado, protegido ou em uma zona confortável. Cuba é para os fortes!
Tudo isso que foi dito, não teve intuito de reclamação. É uma constatação de quem já sente o efeito Cuba. É purgatório e é benção dependendo do dia. Só sei que é algo que te muda para sempre. Talvez tenha me tornado um ser humano melhor, não quero ser tão hedonista na afirmação, mas que mudei muito, sim, mudei.
4 Comments
Vc disse exatamente tudo q vi e senti qdo estive em Cuba! E olha q não odeie essa constatação! Da pena sim ver os cubanos ávidos pelas coisas do nosso mundo capitalista e consumista mas da pena tb ver q eles têm tanta riqueza em não pertencer a esse mundo de manipulações! E eu diria até q eles se alimentam e tem uma vida muito mais saudável q nós !
É isso aí! Obrigada pela leitura!
Bj
Eu amei o seu relato. Cuba foi definitivamente meu ponto de mudança para o minimalismo. A liberdade que muitos falam é a liberdade de consumo, e liberdade para se endividar.
Obrigada pelo carinho!