O conceito de TCK – crianças criadas em terceiras culturas: “Mãe, de onde eu sou?”
Quando você sai do país sem previsão para voltar, as coisas vão tomando um rumo que nem sempre é o que você planejou. Nós, por exemplo, nos primeiros anos ainda tentamos manter nosso apartamento em São Paulo, alugamos algumas vezes mas de repente, veio uma proposta de compra e a coisa mais consciente a fazer era, obviamente, vender. Isto significava arrancar de vez nossa raiz e aceitar que éramos, definitivamente nômades, ciganos sem terra e sem casa e que, no Brasil, seríamos sempre visitas ou hóspedes de alguém.
Mesmo para nós, adultos, isso pode ser difícil. Não ter uma casa para voltar me deixou um vazio no peito mas, na verdade, minhas raízes estão na memória de toda uma vida na mesma cidade, na mesma escola, com primos, avós, tios e os mesmos amigos a vida inteira. Já para nossas crianças o impacto disso tudo é muito maior do que imaginamos.
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O conceito de TCK – Third Culture Kid (criança da terceira cultura) existe desde 1950, e se refere a pessoas que mudaram de país antes de terem tido a oportunidade de desenvolver totalmente sua identidade pessoal e cultural. Com a globalização o número de famílias expatriadas disparou e hoje temos milhares de cidadãos do mundo, que não foram criados em seu país de origem, filhos de duas culturas diferentes ou ainda peregrinos, que mudam de país a cada dois ou três anos. A definição original, segundo Ruth Hill Useem, é de alguém que passou uma parte significante da infância ou adolescência fora da cultura de seu país. Mas, dizem que para confirmar se você é mesmo um TCK basta saber se a pergunta – Where are you from? (de onde você é?) te incomoda. A questão já é até piada entre as famílias de expatriados e realmente as crianças sofrem para responder.
Eu não tenho nenhuma dúvida, sou brasileira, mas minhas filhas viveram menos no Brasil do que em qualquer outro lugar, para elas o país é apenas sinônimo de férias especiais e divertidas e para completar, o português não é a primeira língua delas. E então, qual é a resposta? O lugar onde eu nasci, onde está minha família, o país onde eu vivi mais tempo, o lugar onde fui mais feliz, onde tenho mais amigos, o último país de onde venho ou onde eu vivo agora? E a verdade é que não há resposta certa. Até quando têm que preencher um formulário elas ficam em dúvida. Minha caçula sempre escreve Nacionalidade: brasileira e acrescenta “Coração: africano”. E a conversa também engloba tudo isso: “ – Bom, eu nasci no Brasil mas mudei para a Itália, só que nem lembro, o lugar que eu morei mais tempo foi o México, meu passaporte é italiano mas meu coração é africano e agora eu moro na Holanda mas não sei até quando”.
Às vezes para piorar, depois da pergunta “de onde você é?” algumas pessoas, ao verem a dúvida na cara delas, mudam para: “where is home?”. Que na verdade é uma pergunta mais ampla ainda, tipo: onde é sua casa, seu lar? E a resposta é também bem difícil. Nossa casa nunca é nossa e, por mais que a gente tente deixá-la com a nossa cara, ela é sempre provisória e o fantasma da próxima mudança sempre ronda. Normalmente as casas são alugadas e às vezes não podemos nem pendurar nossos quadros (motivo de revolta total, principalmente entre as adolescentes!). E ainda que, por acaso, acabemos comprando um imóvel, sabemos que a estadia é temporária. Ou seja: “onde é sua casa?” também é uma pergunta impossível de responder.
Então, sempre com o coração apertado, nos apegamos à ideia de lar, usamos tudo que aprendemos sobre como criar TCKs, crianças criadas em terceiras culturas, penduramos pela casa frases como: Home is where the heart is (lar é onde o coração está) e tentamos deixar esta mensagem clara. Gostamos de acreditar que lar é um conceito que podemos carregar dentro de nós. Infelizmente a definição verdadeira de lar não é nada disso. Lar é aquele lugar que você ama, onde você se sente segura e para onde sabe que sempre pode voltar. Quando elas ouviram isso concluíram: “ – Ah, então é a casa da vovó!” (Quem me conhece pode imaginar como chorei, né?)
Nos esforçamos muito para manter os costumes e ter a cultura brasileira sempre presente, mas no fim acabamos criando tradições particulares e exclusivas da nossa família, misturando todas as culturas que fizeram parte da nossa vida, um mix de tudo o que vivemos e conhecemos. Nossa casa, nosso lar é em qualquer lugar onde estejamos juntos. E vejo que apesar das dificuldades, elas reconhecem e valorizam muito todas as experiências que tiveram e desde o primeiro país falam felizes e com orgulho que não têm raízes, mas têm asas.
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Confesso que vejo um milhão de vantagens nesta vida, somos cidadãos do mundo, temos capacidades e ferramentas para sobreviver, nos adaptar e fazer amigos em qualquer continente. Minhas filhas veem o mundo com olhos especiais, não distinguem cor, religião ou idioma, não tem preconceitos, entendem as diferenças, aceitam os desafios e encaram as mudanças sem considerar empecilhos para nada. Mas, quando me aprofundo no conceito de TCK, (vale a pena ver este vídeo sobre o assunto) entendo que esta vida deixará cicatrizes muito profundas nelas. É difícil vê-las passarem a vida se despedindo… Da família depois das férias no Brasil, dos amigos que, assim como elas, estão sempre chegando e partindo, das casas que tivemos, das escolas, professores etc. E por outro lado, depois das despedidas vem o desafio de começar tudo de novo, mesmo sabendo que, em alguns anos, toda a dor da separação vai acontecer outra vez.
Então, a conclusão é que estas perguntas acima nunca serão respondidas satisfatoriamente. A verdade é que nossa casa é onde estamos agora e, se lar é onde está o coração, o nosso está espalhado pelo mundo. Nos sentimos livres e fortalecidos quando estamos juntos e nos sentimos seguros e em casa quando estamos viajando.
Acho que a vida de todo mundo é cheia de perguntas sem respostas, mas em algumas situações apenas saber que outras pessoas têm as mesmas questões e dificuldades já nos acalma e conforta, então, se você é mãe de um TCK e quiser conversar, estou sempre por aqui…