Dez curiosidades sobre a Transiberiana, a viagem de trem mais longa do mundo.
No 17° mês da minha jornada de volta ao mundo, um pequeno acidente me fez parar e replanejar a rota cancelando alguns compromissos como voluntária, especialmente a cooperação na Conferência anual de Ecovilas da Europa – que neste ano aconteceu na Estônia; e em uma Escola na Floresta na região de Arkhangelsk, no norte da Rússia. Duas oportunidades importantíssimas para o meu projeto pessoal sobre Sustentabilidade e Educação.
Mas como diz o compositor Toquinho, “o futuro é uma astronave que tentamos pilotar. Não tem tempo, nem piedade, nem tem hora de chegar. Sem pedir licença muda a nossa vida, depois convida a rir ou chorar.”
E foi exatamente isso o que aconteceu comigo. No primeiro domingo de agosto, mais precisamente às 19h20 de Moscou, embarquei sorrindo no primeiro trem da original Transiberiana com destino a Vladivostok e realizei um antigo sonho de mochileira.
Foram exatas duas semanas cruzando a Rússia de uma ponta à outra. 9259 km de trilhos com quatro paradas em cidades estratégicas durante o longo caminho de ferro – Yekaterinburg, Krasnoyarsk, Irkutsk e Ulan-Ude – cujo principal aprendizado eu compartilhei neste texto, no meu blog pessoal Voe Nessa. Há quem faça todo o percurso sem paradas durante sete dias. Confesso que não sei se eu aguentaria.
Tem muita informação disponível na rede global sobre esta fascinante viagem. Meu objetivo aqui não é dizer o mesmo com outras palavras. Portanto, se você quer conhecer em detalhes o que é a viagem, quando fazer e como se planejar, compartilho abaixo alguns links que utilizei como fonte de pesquisa:
Guia Prático: Como Fazer a Transiberiana
Trans-Siberian Railway
Neste texto, pretendo compartilhar 10 curiosidades, divididas em três categorias, que eu observei durante a minha experiência pelos trilhos em pleno verão russo.
Categoria I – Vista da janela
Um dos melhores passatempos da viagem é, sem dúvida, a incrível vista que as disputadas janelas proporcionam ao som do tic-tac do trem ou da sua playlist favorita. Um dos momentos mais marcantes para mim foi em uma manhã ensolarada, quando a Aquarela de Toquinho pipocou na minha playlist e me fez chorar de emoção. Enquanto o sol refletia meus olhos molhados na janela, eu lembrava dos meus sonhos inocentes de criança e me sentia contemplada e grata por um deles está sendo realizado. Olha aí eu rindo e chorando ao mesmo tempo.
Espetáculo natural e cultural
O trecho inicial, de Moscou a Yekaterinburg, é onde fica a divisa entre Europa e Ásia. Só apreciar as diferentes paisagens já paga o bilhete e elimina qualquer tédio. Florestas, campos, lagos, rios, cidades, vilarejos, as anciãs russas em seus trajes tradicionais. Tudo compensa!
Já o último e mais longo trecho, de Ulan-Ude a Vladivostok, reserva a vista mais bonita no meio da Natureza selvagem. As imponentes montanhas apresentam a fauna siberiana e alguns sinais do outono em sua flora.
Casas tradicionais dos pequenos vilarejos
As casas de madeira decoradas com cores vivas e janelas modeladas em diferentes estilos também são um passatempo interessante. A grande maioria tem sua própria horta e estufa (green house) para garantir alguns vegetais e frutas durante o rigoroso inverno.
O clima
O tempo muda com muita frequência na região. Na mesma hora, é possível apreciar o sol intensificando a beleza de cada paisagem com o seu brilho, e a chuva trazendo frescor e o cheiro maravilhoso de terra molhada.
Leia também: Dicas de turismo na Rússia
Categoria II – O trem
Este tópico tem assunto suficiente para um livro, mas vou tentar destacar os pontos mais interessantes, divertidos e inconvenientes.
Serviços
Como a maioria dos “comissários de bordo” não fala inglês e não há informativos no idioma universal, não consigo compartilhar todos os serviços disponíveis no trem. Posso listar apenas os que presenciei:
– Dois funcionários por vagão que se revezam por turnos e fazem de tudo: check-in e check-out; distribuição das roupas de cama incluindo uma toalha de rosto e uma xícara para chá; limpeza do chão três vezes ao dia; limpeza frequente dos dois banheiros (um em cada ponta), assim como a abertura e o fechamento de ambos a cada parada – já que tudo que é feito nos sanitários é jogado diretamente nos trilhos através da descarga acionada com um pedal; assistência a alguma necessidade especial e suporte a todos os passageiros. Verdadeiros guerreiros que deixam suas casas para viver a bordo de um trem durante dez dias corridos. Confesso que a minha antiga experiência em Recursos Humanos despertou uma curiosidade extra sobre a legislação trabalhista. Me cocei para perguntar, mas eles não falam inglês. Portanto, foi impossível desenvolver uma conversa sobre este tema. Mas elogiar o trabalho deles eu consegui e recebi um sorriso em forma de gratidão.
– Água quente 24h para o preparo das refeições.
– Vagão-restaurante onde é possível comprar alguns produtos na hora ou fazer pedidos com antecedência.
– Médico a bordo.
– Câmeras de segurança nos vagões e policiamento presente e atuante em todas as estações.
Perfil dos passageiros
O que menos encontrei foi turista. Como mencionei neste texto, a maioria dos passageiros é de origem russa. Fiz amizades com a ajuda do Google Tradutor, especialmente com algumas siberianas que viajavam sozinhas ou com seus filhos e netos. A primeira, por exemplo, estava visitando sua irmã em Moscou com o filho de 6 anos, trabalha num restaurante japonês e pilota carros de alta velocidade em suas horas livres. Tem seu próprio carro para participar das competições e me deu carona nele quando chegamos quase à meia-noite em Yekaterinburg.
Famílias inteiras, estudantes de férias, grupos de amigos, trabalhadores e bêbados também são passageiros frequentes. Até uma tropa de soldados eu vi, russos muçulmanos que rezavam cinco vezes ao dia e o meu companheiro de cabine preferido, um senhorzinho buriato de mais de 80 anos que tentava conversar comigo em inglês.
Sem falar nas crianças, é claro, que enchiam a minha viagem de alegria e vida! Destaque para o Ivan de 7 anos da foto que me deu muitos abraços, escreveu meu nome em russo e desenhou um beijinho para mim quando desembarcou.
Hábitos da tripulação
Esse é o item mais curioso. Como é interessante observar as diferenças:
– Miojo com pão no café da manhã, salsicha e linguiça cruas nas demais refeições estão entre os produtos mais populares.
– Meias com chinelos e chá quente durante toda a viagem, mesmo no calor do verão.
– Vaidade das russas que retocam a maquiagem a cada parada, usam pijamas em público e trocam de roupa mesmo sem tomar banho.
– Fazer a barba na janela próximo ao local que fornece água quente, onde geralmente preparamos a comida.
Passatempos
Leitura, música, palavras cruzadas, pintura, desenho, quebra-cabeças, jogos de mesa e eletrônicos, celular, a velha e boa conversa, e comer, é claro, estão entre os passatempos preferidos. Eu ainda consegui fazer alguns alongamentos e meditação, além de apreciar a paisagem em silêncio e pensar na vida, minha atividade favorita.
Convivência
Está aí o principal desafio da viagem: conviver longas horas ou dias com estranhos em espaços bem limitados.
O forte cheiro de comida, álcool, perfume e CC (cheiro de corpo) misturados; ligações intermináveis aos berros; músicas e vídeos sem fone de ouvido; conversas paralelas e portas batendo à noite são ingredientes suficientes para exigir um bom equilíbrio emocional e prática do lado zen. Basta uma pessoa inconveniente para tornar a viagem desagradável.
A ausência do senso de coletividade também me incomodou em alguns momentos. Como, por exemplo, quando uma pessoa na cabine não concordava em abrir a pequena janela superior (única que pode ser aberta). Os demais cinco membros queriam ar fresco. A russa em questão ignorou o desejo da maioria e viajamos três dias sem ventilação natural. Ah se eu falasse russo… usaria a Comunicação Não Violenta (CNV) com ela certamente. Como não falo, tive apenas que aceitar e entoar o OM silenciosamente centenas de vezes para não voar no pescoço da egoísta. Pronto, falei!
Categoria 3 – Nas plataformas
Não menos importante, a intensidade das experiências vividas nas plataformas das pequenas ou grandes estações é um atrativo à parte.
Corrida contra o tempo
A primeira parada de 10 minutos, após quase 18h de viagem, coincidiu com a hora do almoço e a maioria dos passageiros aproveitou para comprar comida. Como me abasteci bem para não sentir fome durante o percurso, comprei apenas um sorvete para saborear enquanto observava curiosamente o que acontecia ao redor.
– Vi gente discutindo na fila da barraquinha porque alguém não respeitou a vez.
– Fumei passivamente uns 50 cigarros de tanta fumaça que havia na plataforma provocada pelos fumantes que estavam em abstinência.
– Alguns escovavam o cabelo, enquanto outros usavam o sinal telefônico ou WiFi (disponível apenas para números de telefone russos) para fazer algumas ligações.
– Já as crianças, sempre meu público preferido, aproveitavam para pular, brincar e gastar toda energia acumulada no vagão. Foi, inclusive, observando um garotinho brincando com uma formiga que eu quase perdi o trem (Jesus do céu!). Depois desse incidente, fiquei mais esperta.
Desembarque e embarque
A cada parada, a comunidade itinerante se renovava. Na plataforma, parentes e amigos se misturavam com os passageiros demonstrando amor e afeto, seja dando boas-vindas com flores no desembarque ou um até breve com um forte e demorado abraço no embarque.
Até eu, estrangeira, tive essa experiência no término da viagem, quando a russa que me hospedou durante três dias em Vladivostok foi me buscar na estação e me recebeu calorosamente na porta do vagão. Foi uma maneira bem especial de celebrar mais um sonho realizado!
2 Comments
Ta aí uma viagem que tenho muita vontade de fazer… Obrigada pelo relato Vanessa <3
Gratidão pela leitura, Ana! É uma viagem especialmente interna, de autoconhecimento. Recomendo! 🙂