Direitos das mulheres na França e no Brasil.
Na manhã do dia 8 de agosto eu estava recebendo uma amiga francesa para tomar café da manhã. Papo vai, papo vem, ela me perguntou como era a influência da religião no Brasil e na América Latina. Coincidentemente, naquele dia o senado argentino iria votar a lei que legalizaria o aborto e, embora no início da discussão, houvesse mais senadores a favor da legalização, a pressão religiosa fez com que vários recuassem e, naquela manhã, já se imaginava que a lei não iria ser aprovada pelo senado.
Contei, em seguida, que na grande maioria dos países da América Latina o aborto é proibido e que no Brasil uma mulher pode ser presa ao praticá-lo. Expliquei que isso não é um problema para as mulheres ricas que podem ter acesso a métodos abortivos seguros no conforto do seu lar e a hospitais de luxo caso algo dê errado, mas que mulheres pobres têm menos acesso a informação e praticam métodos abortivos mais arriscados, aumentando o risco de complicações, como perfuração do útero. O problema continua quando muitas dessas mulheres pobres não procuram o hospital com medo de serem denunciadas – metade delas são segundo dados do Ministério da Saúde – e, quando procuram, tem que escolher se contam sobre o aborto e correm o risco de serem presas ou se preferem omitir e arriscar a vida.
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Quando terminei de fazer esse relato, a minha amiga francesa me olhava com um olhar tão perturbado que eu fiquei com vergonha do que tinha acabado de descrever. Naquele momento percebi ela estava tão incrédula ao ouvir sobre a falta de direitos da mulher no Brasil quanto eu quando ouço sobre mulheres muçulmanas que não tem o direito de votar, de dirigir, de trabalhar, afinal, todas essas são formas de cercear a mulher de decidir sobre a sua própria vida.
Na França o aborto é permitido desde 1975 através de uma lei chamada de lei Veil, em homenagem à Simone Veil, ministra da saúde e responsável pela aprovação da lei em um período em que o congresso Francês era composto por, pasmem, 481 homens e 9 mulheres. Hoje ela é tida como uma heroína na França e, recentemente, seus restos mortais foram colocados no Panteão junto com verdadeiros ícones nacionais como Victor Hugo, Émile Zola e Pierre e Marie Curie.
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Por que esse abismo de entendimento da prática do aborto entre a França e o Brasil? Por que em um país a pessoa responsável pela legalização do aborto é tida como heroína nacional, enquanto no Brasil a maioria dos presidenciáveis e congressistas se declara contra a ideia? Na França o princípio de que o aborto deve ser permitido recai em três pilares: 1) o direito da mulher de decidir sobre o próprio corpo, 2) evitar as mortes e mutilações causadas pelos abortos clandestinos e 3) a ideia de que NENHUM método contraceptivo é 100% seguro.
E no Brasil? A ideia de que o aborto deve ser proibido se baseia em quais argumentos? A meu ver em três: 1) o argumento de que a “proteção à vida” é mais importante que o arbítrio da mulher sobre o próprio corpo, 2) de que se as pessoas tiverem mais acesso a métodos contraceptivos e a informação os números irão diminuir e 3) de que a proibição é efetiva no controle dos casos.
Em um texto muito lúcido na Folha de São Paulo a psicóloga Vera Iaconelli lembra que se estivéssemos, de fato, defendendo a redução do número de abortos e, portanto, “protegendo a vida”, aprovaríamos a legalização, pois, em geral, quando o aborto passa a ser permitido seu número diminui. Muitas vezes só da mulher poder falar sobre as suas angústias com profissionais da saúde basta para que ela decida não abortar ou para que ela seja conduzida de uma forma protegida para a doação do bebê, evitando abandonos; mas esse diálogo não pode ser possível no silêncio imposto pela proibição. O que acontece no Brasil é que, ao dizermos que protegemos a vida, acabamos aumentando o número de mortes maternas e de abortos. Na França há menos de uma morte por ano em consequência da interrupção voluntária da gravidez, enquanto no Brasil elas podem girar em torno de 200 por ano.
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Quanto ao argumento de que o acesso à informação e a métodos contraceptivos pode diminuir o número de abortos, vale lembrar que na França são realizados, em média, 200 mil abortos por ano, embora 97% das mulheres declarem que usam métodos contraceptivos (aqui tudo é pago pelo governo, desde a pílula, até métodos mais caros como o DIU, independente da idade da paciente), ou seja, não é a falta de acesso ou de informação que faz com que elas tenham necessidade de realizar o procedimento ao longo da vida. A parte incrível é que, ao dar a chance e todo o suporte necessário para que a mulher possa decidir sobre a sua vida reprodutiva (preservando a sua fertilidade, por exemplo), a França tem uma das maiores taxas de natalidade da Europa.
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Portanto, nos restaria o argumento final de que a proibição é efetiva para regular as ocorrências de aborto, pois as mulheres deixam de abortar por saberem que podem responder judicialmente por isso. No entanto, as mulheres podem repensar o aborto por vários motivos, mas não imagino que nenhum deles seja pelo medo de responder judicialmente.
Eu já atendi inúmeros casos de pacientes que precisaram praticar aborto, desde adolescentes a mulheres casadas e com filhos, além disso, já tive pacientes que deixaram o filho para adoção; e eu nunca vi isso acontecer sem ser cercado de muito sofrimento. Ninguém quer abortar, ninguém quer uma gravidez indesejada, ninguém quer ter que abdicar de um filho por não poder criá-lo, mas, infelizmente, muitas vezes passar por uma maternidade sem condições psíquicas, físicas, financeiras, ou doar um filho são dores muito piores do que a de precisar abortar.
2 Comments
Olá, Fernanda.
Li seus outros textos sobre como é viver na França e esse me chamou atenção quando li o título sobre as diferenças nos direitos das mulheres no Brasil e França, mas praticamente só retratou a questão do aborto. Realmente fiquei curiosa sobre os direitos das mulheres, que sei que na França isso é um diferencial, e seria legal ler um texto sobre isso e não só sobre aborto.
Seus outros textos são ótimos !
Abraço
Oi Eluana, tudo bom? É verdade, o texto acabou voltado bastante para o aborto, né? O que eu poderia te dizer é que a licença maternidade é a mesma, ou seja, 3 meses. A mulher francesa, assim como a brasileira, tem direito ao acesso gratuito a contraceptivos. A idade para aposentadoria da mulher é a mesma que a do homem, 62 anos. Essas foram algumas informações que eu fui lembrando. Infelizmente, não vai sair nenhum texto novo meu sobre isso porque eu saí da plataforma já que me mudei de volta para o Brasil. Um abraço, Fernanda.