Eleições na Áustria.
O ano de 2016, na Áustria, foi marcado por uma eleição presidencial bastante turbulenta: de um lado, um candidato independente, apoiado inicialmente pelo Partido Verde; do outro, a encarnação da extrema-direita.
O pleito foi o mais peculiar da história da república, pois por uma diferença de aproximadamente 31 mil votos (em um universo de 6 milhões de votantes), o candidato Verde levou a vitória. Inconformados e sempre com uma enorme disposição ao separatismo e a disseminação da discórdia, o partido extremista questionou o procedimento perante a Suprema Corte austríaca, que não teve outra alternativa a não ser anular toda a eleição e mandar repeti-la.
É de se esclarecer, entretanto, que não houve fraude, nem manipulação de votos que acarretasse a anulação do pleito. Isso ficou, inclusive, registrado pela Máxima Corte. O que ocorreu e obrigou o cancelamento da corrida presidencial, foi a mera falta de atenção ao regulamento eleitoral. Explico-me: foi apurado que algumas seções eleitorais não seguiam à risca o caderno de conduta nas eleições, mas faziam o seu próprio, do tipo: iniciavam as atividades antes do horário previsto no manual, mesmo que com a concordância de todos os fiscais dos partidos e suas assinaturas em ata, e assim, dentre outras constatações, colocaram em cheque toda a segurança jurídica do sistema de eleições nacional. Em razão disso, a Suprema Corte não teve outro caminho a não ser o de ordenar que a lei fosse respeitada e que tudo fosse repetido. Quando da data marcada para a repetição, novo problema: envelopes destinados à votação pelo correio (aqui essa modalidade é possível) foram encontrados com a parte de baixo totalmente descolada. O envelope veio de fábrica aberto e, portanto, imprestável. Nada havia sido ainda usado, o defeito foi observado nas conferências prévias, mas, como não havia mais tempo para correção, novo adiamento.
O aparente benefício de primeiro round dos extremistas arrepiou os cabelos de todas as pessoas de bem, que não compactuam com a ideologia do medo e de segregação disseminada pelo partido. Europa em alerta por conta dessa guinada, além do mundo, que voltou também seus olhos para dentro da Áustria por conta do risco da eleição de um representante da extrema-direita ao cargo máximo do país. Meu marido, que trabalha em uma empresa de nível global, já estava ouvindo piadinhas – de péssimo gosto – que diziam que “a Áustria voltaria a ser nazista, caso o candidato Verde perdesse”. Boa parte da nação sentia-se do mesmo jeito que meu esposo: incomodada com a já péssima imagem que pairava sobre si. E é nesse ponto que entra meu comentário sobre o povo saber usar o poder que tem.
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Além de o Partido Verde suportar a campanha de Alexander Van der Bellen, bem como a massa de seus eleitores, também a cena das artes, da literatura, do teatro, da música; os intelectuais, adultos com formação acadêmica ou superior, as mulheres jovens, todos, uníssonos, apoiaram a proposta de união, de permanência de uma coalizão pacífica com a Comunidade Europeia, de acolhimento estruturado dos refugiados e sua integração na sociedade, de alternativas de futuro à juventude e de paz. O discurso contrário era o extremo oposto deste, com várias menções inclusive a realização de um referendo para a saída da Áustria da Comunidade Europeia, aos moldes do que ocorreu com o Reino Unido.
A campanha do professor Van der Bellen ganhou corpo e robustez definitivos com a recomendação de voto e com o alinhamento de apoio dos demais partidos e seus ícones – cite-se o prefeito de Viena que ativamente participou de comícios e atos em prol de Van der Bellen -, dos idosos e dos jovens, inclusive, não eleitores. Sim, idosos e jovens levantaram de seus sofás e se engajaram na luta que beirava o bem x mal, tão polarizada a nação inteira ficou.
O pequeno exército jovem (assim eu os chamo) contribuiu tanto nas ruas, quanto dentro das próprias casas: eles convenceram seus avós a irem votar e a votarem em Van der Bellen pelo futuro deles, netos e netas. O trabalho de formiguinha dessa juventude rendeu excelentes frutos: uma vovó, perguntada em entrevista de rua acerca da eleição, confirmou que seus filhos e seus netos a convenceram a votar em Van der Bellen e ela assim o fez também por convicção e estava feliz com a escolha.
Os aposentados – sob o meu ponto de vista privado – trouxeram a campo a experiência de haverem vivido e sobrevivido tempos de terror e, por isso, não queriam um revival – mesmo que brando – daqueles períodos horrendos. Em última análise, eles pediam por união e paz.
Nessa esteira, surgiu a contribuição da Oma Gertrude (Vó Gertrude). Austríaca, 89 anos, aposentada. Ela tomou a iniciativa – corajosa – de ir para a frente de uma câmera, e consequentemente ao Youtube, pedir à nação que refletisse acerca do que o partido extremista propagava. Ela já havia ouvido discursos bem semelhantes durante o período nazista e durante a Segunda Guerra. Ela conclamava as pessoas a raciocinarem seus votos, a não se deixarem levar por palavras doces, porém vazias e cheias de segundas intenções. Dona Gertrude apenas convidou à reflexão, tendo sua experiência de vida como confirmação de seus argumentos: aos 16 anos de idade foi deportada, com toda a sua família, para Auschwitz e, de lá, somente ela voltou viva.
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O interessante a ressaltar é a ação individual no sentido de ajudar a “salvar” a nação. A própria Oma diz: “essa pode ser minha última eleição, mas os jovens têm todo o futuro pela frente. E eles só podem ter um bom futuro se forem votar e se votarem conscientes”. Não é pouca coisa. Não é qualquer coisa! Não era vídeo de campanha, mas após seu lançamento (trago a versão em espanhol), recebeu mais de 3 milhões de visualizações e especulava-se, até, que pudesse decidir a eleição, segundo notícia em periódico suíço.
https://www.youtube.com/watch?v=nXrb-YnAgys
Após toda essa mobilização popular, chega a coroação do esforço: a extrema-direita fora derrotada com uma diferença de votos maior do que a primeira votação: 53,79% dos eleitores garantiram a vitória de Van der Bellen. Fatores externos como o Brexit e a escolha de Donald Trump também fizeram eco junto aos austríacos, em uma espécie de pavorosa antevisão do que lhes poderia ocorrer caso elegessem a proposta que mais se aproximasse desses dois modelos.
Insisto ainda na eficácia dos cidadãos, porque uma campanha eleitoral, aqui, é totalmente diferente do que uma corrida eleitoral no Brasil: aqui não existe programa eleitoral de rádio ou TV e não existem bombardeios midiáticos dos candidatos sobre a população. Para conhecer as propostas, há entrevistas dos candidatos pelo rádio e pela TV e um ou dois debates televisionados e só. Fora isso, há o corpo a corpo junto à população, cartazes de campanha espalhados pelo país e os movimentos do militantes em carreatas, caminhadas e comícios. Sob esse cenário, o trabalho de convencimento precisa ser muito bem feito, pois a contribuição da mídia não tem tanta significância como a temos no Brasil.
Ninguém é ingênuo em acreditar que a sombra extremista está banida para sempre, amém. Eles estão aqui, irão tentar novamente e continuarão suas estratégias de aquisição de poder, mas o recado foi dado e muito bem dado!
Por 6 anos, a presidência da república e a imagem externa da Áustria estão preservadas e o que estava se preparando para sair dos armários do ódio, voltou derrotado, pelo menos, por esse período.
O mais interessante disso tudo, entretanto, é que uma lição assim, do povo bem utilizando seu poder é, nos dia atuais, bastante surpreendente e até admirável. Exemplo válido para qualquer eleitor ao redor do mundo!
E parece simples, mas não é!
6 Comments
Ufa!! Que bom que tudo terminou bem!!
Deu arrepios ler seu texto hj!
Imagina alguém que pensa como Trump no poder?
Ps: ADORO ler seus textos!! Continue escrevendo!
❤??
Alô, minha xará!
Obrigada por ler e comentar!
Aqui, seria um pouquinho pior, Anna, porque o país, infelizmente teve seu passado nazista e é de lá que esse partido extremista retira suas “inspirações”.
Graças a Deus, correu tudo bem, com direito a frio na barriga e tudo, sim. E vamos torcer para que França e Alemanha sigam o mesmo caminho daqui nas eleições que se aproximam.
Obrigada por apreciar meus artigos e, com certeza, seguirei escrevendo.
Grande abraço.
Da pra ver o viés de esquerda no texto…
Alô, Carlos Henrique.
Obrigada por ler e comentar.
Essa lógica brasileira de rotular “esquerda” ou “direita” aqui, não se aplica, porque não há como comparar as realidades da Áustria e do Brasil.
O que se aplica aqui é a manutenção da paz, da liberdade de expressão e pensamento, e o afastamento de ideologias neonazistas. Então, se defender esse tipo de princípio é o que tu imaginas que seja “viés de esquerda”, então que seja, né? Porque uma direita neonazista eu tenho certeza que nem mesmo tu gostaria de experimentar.
Abraço.
E até a próxima.
Ana, arrasou no comentário!
Esse embate “esquerda x direita” de brasileiro já virou doença.
Alô, Maurício.
Obrigada.
Quando se vive uma realidade diferente, é mais fácil “sair da casinha”. Esse é o meu caso! Hehehehe.
Grande abraço e até a próxima.