Eu pisei para fora do meu prédio, senti um cheiro de dama da noite em plena manhã de sol. Pensei que amo quando o Brasil me surpreende com suas pegadinhas da natureza. Respirei fundo, ajeitei a mochila nas costas e coloquei meu fone de ouvido. Olhava as coisas ao meu redor, quase que em câmera lenta. Desejei que meu caminho até o trabalho durasse eternamente, assim eu teria tempo para pensar, embora eu não soubesse muito bem em que eu queria pensar.
Respirava fundo, como aquelas pessoas que fazem exercício de respiração para se acalmar. Pensei no que poderia estar me cansando, mas não precisei gastar muito tempo para perceber o que era.
Me dei conta de que passei uma vida inteira tentando definir quem eu era, como eu me comportaria e o que eu queria pra mim. Precisei desconstruir tudo que estava ao meu redor, sair completamente da minha zona de conforto, mudar de país e sentir medo e saudade para entender que eu podia ser simplesmente eu, mas que para isso era preciso ser corajosa, afinal as pessoas tinham expectativas em mim e seria bem difícil mostrar à elas que eu talvez não fosse nada daquilo que elas esperavam, que eu representava as minhas próprias bandeiras e não mais as delas.
Enquanto andava e pensava, fui interrompida por dois homens encostados em um poste olhando indiscretamente para uma mulher na minha frente e fazendo comentários desrespeitosos em voz alta. Minhas costas pesaram feito chumbo quando me lembrei como é muito mais difícil ser mulher aqui do que na Inglaterra, como somos desrespeitadas nas ruas, nas empresas e, em muitos casos, até dentro nas nossas próprias casas.
Assim que cheguei no Brasil fui bombardeada por histórias de amigas que foram demitidas de suas empresas após voltarem de licença maternidade, de amigas que foram desrespeitadas em baladas e até mesmo presencie cenas bizarras de abuso, como essa que citei, nas ruas de São Paulo, Brasília, BH e Rio de Janeiro (lugares que estive desde que cheguei). Como pode ser tudo tão claro agora? Como posso ter vivido em uma espécie de bolha e, depois de dois anos, voltar à terra do medo constante de ser abusada ou estuprada? É bem complicado aceitar essa realidade novamente depois que se conhece algo bem diferente.
Fico pensando intrigada sobre tudo isso, e me lembro que já nasci feminista. Lembro de ver minha mãe e tias lavando louça depois da ceia de Natal e pensar porque eram sempre elas que faziam isso. Lembro de um dia um cara mandar uma mulher perto de mim “voltar para o fogão” e sentir meu rosto queimar de tanta raiva. Acho que se existe reencarnação, com certeza fui uma sufragista em alguma encarnação passada. Como pode alguém que mal sabe escrever já ser feminista e sentir raiva da repressão?
Sempre fui brava, me colocava na defensiva e achava que precisava me mostrar forte e segura para não ser abusada ou diminuída. Mas o tempo foi passando e durante minha vida fui oscilando meu comportamento, tive relacionamentos machistas, vi de perto famílias que colocam a mulher como a dona da casa, que exigiam que elas se casem, saibam cozinhar e façam tarefas da casa. Isso tudo sempre me incomodou, mas houve um tempo na minha vida que não me revoltei mais, apenas ignorava.
Comecei a negar ser feminista, embora eu nunca de fato tenha deixado de ser, associava o feminismo àquela figura da mulher macho, grossa e que não tem quem lhe ame. Pois é, logo eu que tinha tudo para seguir um caminho coerente na vida, fui cair nesse discurso manjado de uma sociedade machista.
Foi depois de mais velha, já formada, trabalhando há alguns anos na minha área, que comecei a me relacionar com homens bem sensíveis, que me mostravam coisas que eu mesma não conseguia enxergar sozinha, e que de alguma maneira me incomodavam e pareciam muito alternativas para o que eu conhecia como normal. Mas aos poucos, fui vendo que tinha sido colocada dentro de um poço fundo, mas que ali estava a luz que começava a me mostrar a saída.
Hoje, casada, com 30 anos, após viver 2 anos na Inglaterra, estou preparada para me considerar oficialmente de volta à luta, sou feminista e, mesmo tendo que quebrar com muitos padrões enfiados agressivamente dentro de mim por essa sociedade, me sinto finalmente sincera comigo mesma.
Em um mundo onde coisas básicas impostas às mulheres não fazem nenhum sentido, como podemos nos calar? Se igualdade de gênero é mimimi, trabalhar e cuidar sozinha da casa e dos filhos é considerado justo, um homem entregar uma mulher “virgem” para o outro homem é considerado romântico, ter nojo de pelos e sangue feminino é algo natural, como podemos explicar que absolutamente tudo está errado sem parecermos agressivas e cansadas de tudo isso? É, é bem puxado mesmo.
Neste novo ano não consigo desejar algo apenas para mim mesma, meu desejo é que nós, mulheres, sejamos mais gentis conosco e possamos desconstruir esse “muro de Berlim” entre nós e nossos corpos e almas. Desejo que possamos reinventar nosso mundo e criar um Brasil mais feminino, matriarca e respeitador, afinal ser mulher é ser forte, inteligente e saber liderar com cautela e inspiração.
Talvez eu seja louca mesmo, esteja sonhando alto, ou talvez você vai reclamar aqui embaixo nos comentários que não quer mais perder seu tempo lendo um texto, que não vai te dizer em qual país deve morar para ser feliz, ou o quanto podemos ser felizes e começar mais um dos melhores anos das nossas vidas, mas mesmo cansada eu tenho que tentar, afinal quem sabe você lê esse texto hoje e seja um dos meus, desses que querem inventar um mundo novo e comece a questionar, falar, agir e pensar, afinal, sinto te dizer, mas nada é tão simples como te contaram.
6 Comments
Amei! Bravo!!
Moro na Inglaterra, tb ja fui e voltei, e sei o qto e diferente o papel da mulher em ambos os paises- apesar de ter, hj em dia, minhas criticas a respeito das mulheres ingleses,vide meu texto q sera publicado no Brasileirinhos Pelo Mundo: Chama a Midwife!. Quem sabe fomos sulfragistas na ultima encarnacao?! Obrigada pelo texto belissimo e profundo!!
Que bom que gostou, Monica. 🙂
Vou ler seu texto sim, adorei o tema.
Beijos,
Joh
Bravo, Johana, estamos juntas nessa luta! Feliz 2018!
Valeu, Vivian!
Feliz ano novo!!!
Beijos
Muito legal essa sua análise de você, creio que esse é um grande passo pra gente buscar ser melhor, analisar para ver outras perspectivas.
Creio também que o perfil da mulher viajante, a mulher que vive fora do Brasil. É não conseguir aceitar determinadas condições, expressões machistas, porque a gente aprende na prática que pode ser diferente, que não há costume, tradição machista que não possa ser quebrada. A revolução começa com um ato de rebeldia de ”não mais, basta, farei como quero”.
Tem razão, Mirella. Viajar é um privilégio que devemos valorizar e aproveitar.
Como dizem os portugueses: devemos fazer uma ligeira revolução. 🙂
Beijos,
Joh