No Brasil, usamos a expressão “jeitinho brasileiro” para explicar toda malemolência e malandragem usada para solucionar problemas do dia a dia, de uma forma não tão oficial. Na verdade, a expressão no diminutivo – quase que carinhosa – é uma tentativa de transformar um hábito prejudicial e feio em algo culturalmente aceitável. No Egito não é muito diferente. Podemos considerar que eles também usam o viés do “jeitinho egípcio” para resolver suas pendências do cotidiano e guiar a vida em sociedade, entretanto tem suas particularidades, que faz desse jeitinho único – a cultura do Inshallah.
Essa palavra em árabe, significa “se Deus quiser”. E tudo aqui é nessa base. Grande parte das perguntas que você faz para alguém é respondida dessa forma: Inshallah! O que isso significa? No geral, que só se Allah quiser mesmo, por que ele não estará fazendo esforço nenhum para isso. Quando dizem realmente desejando que a coisa aconteça, a entonação é completamente diferente e mais forte.
Além disso, algo não foi como planejado? Você foi displicente e algo deu muito errado? Não é culpa sua. Foi por que Deus quis assim. Acidentes de carro? Foi por que Deus quis, então quem está errado não precisa pagar pelo prejuízo, no máximo dividir.
Some a isso uma grande dificuldade em responder não. Muito raramente eles dizem não a um convite ou se esquivam de alguma proposta, o que não significa que pretendem ou vão cumprir o combinado. Responder não, para eles, é considerado falta de educação, e para serem educados vão concordar e entrar na onda do que você falar. Responder nem que sim nem que não, mas Inshallah. Depois, vão “furar” ou te deixar esperando, e aí … entram com uma mentirinha (com amor, claro, segundo eles) para justificar a falta, que se sabia que cometeriam desde que combinaram com você. Assim também é com o “não sei”. Consideram uma vergonha muito grande dizer não sei, e aí vão inventar qualquer coisa e responder veementemente. Não acredite em informações a menos que tenham sido dadas por duas pessoas diferentes e as informações batam.
Se eu pudesse escolher um único hábito para destacar, escolheria as mentirinhas, que eles juram serem ditas com amor. Egípcio adora inventar uma mesmo que ela não afete em nada o resultado da conversa ou negociação. Por exemplo, a pessoa chegou atrasada no trabalho porque o ônibus não passou. Ela tem um fato verídico que justifique a falta, mas não, ela vai chegar no trabalho e se justificar com o chefe que chegou atrasada porque a mãe passou mal, e aí quando estava indo na farmácia, rolou três andares de escada abaixo, e o cachorro ainda correu atrás dela, sem contar a chaleira que explodiu na sua mão, quando estava fazendo chá para mãe. Eles sempre criam uma história mirabolante para tudo e são mestres nisso, conseguem convencer. Às vezes elas não fazem diferença alguma no produto da conversa, às vezes, fazem.
Nada nunca é claro por aqui. A começar pelos preços de quase tudo que têm que ser negociados na hora, até as condições do negócio que sempre são estipuladas conforme anda a carruagem e nunca de antemão. Com isso, é muito fácil que eles mudem o combinado de uma hora para outra e te deixem na mão. E não adianta reclamar, ameaçar procurar “Procon” ou acusar de não serem profissionais, isso para eles não é nenhuma ofensa (mesmo que a decisão tenha sido deles, só aconteceu por que Allah quis assim). O único jeito que costuma funcionar (aprendi recentemente essa técnica) é apelar pra Allah. Não, não precisa rezar para ele ou professar a Surah. Se isso acontecer com você, vá pelo lado que Deus está vendo que ele está quebrando o combinado e prejudicando alguém. É a única coisa que eles temem.
Nem mesmo a burocracia governamental é explícita. Por exemplo, no meu casamento, não havia uma lista de documentos a serem levados. E eles falavam três, quando levávamos os três, eles pediam outros dois, e assim ia. Não paravam de aparecer coisas. E tudo depende do quanto eles vão com a sua cara e claro, daquela nota que “sem querer” cai da sua carteira, ou daquele aperto de mão premiado. Às vezes eles ficam colocando empecilhos, para te forçar a oferecer um “bônus”. A corrupção está profundamente arraigada na sociedade.
Já presenciei um policial sendo subornado por aproximadamente 6 reais. Qual era a infração? O carro do amigo do meu marido estava estacionado em linha tripla, em uma das avenidas de maior tráfego da cidade, no horário do rush, só deixando uma pista liberada e causando um congestionamento de quilômetros. O policial foi lá, pegou 5, 6 reais de cada um (eram vários carros), ficaram todos parados como estavam e ele foi embora com a graninha extra para o fim de semana.
Além disso, lá ainda funciona o “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Qualquer problema que você tenha, você aciona um oficial da polícia que sua família conheça, a outra parte também, e aí é briga de patente. Não importa quem é o certo ou o errado, ganha quem levar a patente mais alta. E sim, o cara sai no horário de trabalho para ir lá resolver o problema do amigo dele.
E assim é a vida aqui, sempre se adaptando ao que tem para o dia e as circunstâncias do momento. Dez minutos, aqui, podem significar horas, até o fim do mês é até no meio do próximo mês e você torce para que Inshallah você se acostume. Planejar por aqui, só dá certo desde que os planos contem apenas com você mesmo.
2 Comments
Meu Deus. E eu que pensava que a nossa realidade brasileira era o Inferno na Terra. Tudo o que você descreveu no texto é o que mais abomino, mesmo que eu veja eventualmente por aqui (pelo menos em minha experiência pessoal e profissional). Imagina conviver com isso diuturnamente!
Só falou verdades. Já vivi e convivi lá e com pessoas de lá, e são assim mesmo(as pessoas são super gente boa, mas os costumes corrompem mesmo). A parte mais verdadeira é o “molhar a mão” em todas as partes você ver isso, governo, hospitais, advogados, muitos lugares. Mas Allah sabe e ver tudo. kkkkk