Na fila da imigração, afinal quem é você?
No dia 14 de julho de 2015, desembarquei em Québec para ficar de vez. Para celebrar meus 4 anos de vida no Canadá, resolvi escrever sobre um assunto muito importante: identidade. Se você leitora ou leitor é imigrante, convido para um mini-flashback. Se você está apenas começando essa aventura, pode ser que se identifique. E se você está prestes a chegar, deixe-me contar mais sobre isso.
Pouso autorizado. Posso ver seu passaporte?
Ainda no avião, quando o comandante avisa que o pouso foi autorizado e todos devem apertar os cintos, vejo essas instruções como algo além de uma norma de segurança aérea. É quase uma profecia. Aquele movimento de descida já provoca naturalmente um frio na barriga. Quando sentimos o contato com a superfície, bem, significa que a coisa toda está realmente acontecendo. Estamos agora em terras novas e aquela decisão de ir embora começa a tomar forma.
O desembarque no aeroporto nos coloca diante de uma nova realidade, ainda que todos os aeroportos ao redor do mundo sejam meio iguais. Primeira etapa: passar pela alfândega. Esse é um momento intimidador para muitos, principalmente quando ainda não se domina o idioma local ou pelo menos o inglês. Logo ali, a gente já começa a ser, de certa forma, julgado. É aquela triagem para ver quem pode entrar e quem talvez não atenda os requisitos.
O agente pede o passaporte, normalmente já aberto na página com foto. Alias, aquela foto que nem sempre favorece, diga-se de passagem… Mas além dela, está o nosso nome, data de nascimento e nacionalidade. Essas informações superficiais são suficientes para explicar quem você é às autoridades locais. No entanto, a verdade é que, ao desembarcar de vez, o choque de realidade nem sempre é tão fácil de administrar.
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Viajantes dirão: É tudo culpa do Jet Lag!
É senso comum que qualquer mudança na vida normalmente exige uma boa dose de jogo de cintura. Mudar significa que não podemos mais fazer algo do mesmo jeito ou manter comportamentos de antes. A meu ver, imigrar é uma ruptura tão grande que eu fico pensando em como a natureza/universo/energia/Deus (escolha a causa que mais se alinha com suas crenças) foi sábia em organizar os planetas do sistema solar de forma a fracionar o tempo em função da localização geográfica: o conceito de fuso horário. Seu sintoma mais clássico é o famoso jet lag e quem viaja muito sabe bem como é. Vejamos aqui uma definição vinda do Dicionário Informal da internet:
[ing.] loc.subst. alteração do ritmo biológico de 24 horas consecutivas, que ocorre após mudanças do fuso horário em longas viagens de avião, caracterizada por problemas físicos e psíquicos, especialmente do ciclo do sono, devido a distúrbio dos níveis hormonais de hidrocortisona [mais frequente em viagens para o leste (que encurtam o dia) do que para o oeste;
ETIM ing. jet lag ‘id.’, de jet < red. de jet plane ‘avião a jacto’ + lag ‘atraso, retardamento’;
Muito bem, e o que o tal do jet lag tem a ver com identidade e imigração, assunto central do nosso artigo? Explico…
Esse mal estar biológico causado pela descompensação horária é apenas um o primeiro sintoma do que vem pela frente e de que a que ponto precisaremos nos readaptar. Numa viagem a turismo, isso se resolve rapidamente, afinal o prazer e o entretenimento imperam e tudo bem dormir menos para curtir cada minuto.
Numa viagem sem passagem de volta, o corpo costuma chegar antes da cabeça. Portanto, o jet lag do imigrante pode durar um pouco mais e envolver outros aspectos além dos biológicos. Nesse contexto, descobrir quem somos é fundamental.
Quando a cabeça não chega, a identidade padece
Em 2016 tive a oportunidade de me tornar conferencista TEDx Québec falando justamente do meu percurso como imigrante e de que forma eu entendia a minha contribuição nesse novo mundo. Na minha apresentação, falei da importância do desapego e de como isso nos ajuda a desenvolver um sentimento de pertencimento a uma nova realidade.
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A imigração nos retira todos os rótulos que acumulamos em nosso país de origem. Sentimo-nos frequentemente despidos da capa que nos protegia e dava total sentido à nossa existência. Percebemos o quanto vivíamos no piloto automático das conveniências sociais. Porém, por mais adversa e paradoxal que nossa rotina pudesse ser, ela era familiar. Mesmo com o desconforto que pudesse muitas vezes rondar as nossas escolhas, aquele jogo a gente sabia jogar.
A tendência mais comum nesse momento de impasse de identidade é fazer como nossos avós, que sempre diziam o quanto os tempos de antigamente eram melhores e como a vida era boa em todos os sentidos. Mesmo que isso incluísse períodos de guerra, recessão e crises políticas. Essa é uma reação normal quando existe uma dificuldade de se conectar com os novos tempos, novas realidades e novos lugares.
E mesmo que você ainda não esteja com uma idade avançada, você se pega saudoso de tudo, até do que nem lhe fazia tão bem assim. Inclusive, pasmem, items que provavelmente constavam da sua lista de razões para ir embora agora parecem na verdade razões para ter ficado. Às vezes a gente sofre de amnésia seletiva intencional. É o sistema de fulga predileto diante das dificuldades do recomeço. Cuidado para não cair nessa armadilha!
Espelho, espelho meu…
Para sentir-se realmente parte de algo maior, não há como esperar que a mágica se opere da noite para o dia. Ninguém acorda numa bela manhã, com a sensação de que tudo faz sentido, de que o seu propósito é claro e que o caminho a seguir é uma reta. Nunca é assim. E aí, é preciso reaprender a aprender, desenvolver nossas habilidades num outro idioma, entender a lógica do contrato social local e como nos encaixamos em tudo isso.
Durante um (talvez bom) tempo, a gente não vai saber exatamente quem é. Não somos turistas, mas não nos sentimos ainda parte da comunidade local. E deixa eu falar: tudo bem! Faz parte do processo! Vivemos numa espécie de limbo da imigração e o fato é que o trabalho duro precisa ser feito por nós mesmos. Existem serviços especializados na integração do imigrante, mas não é a esse tipo de trabalho que me refiro. Estamos aqui falando de autoconhecimento mesmo, algo que nem todos acolhem de bom grado num primeiro momento. Fato é que não há alternativa melhor para promover um crescimento inegavelmente positivo, apesar de toda dor que ele possa (e vai) causar.
Para saber como esse capítulo termina, é preciso ser protagonista da própria história. É preciso ter coragem de se olhar no espelho, de se questionar, de rever conceitos, de descobrir o que realmente importa e o aonde queremos de fato chegar. Desapegar de velhas referências para criar novas. Acolher todos os tipos de emoções como sinalizadores de que algo precisa ser olhado com mais atenção. Entender que erros vão acontecer e que receber um não (ou vários), é que o nos aproxima do sim. Então chegue, sem medo, vá ficando à vontade na própria pele até poder se sentir de novo em casa. Leva um tempinho, mas quando isso acontece, você não vai querer ir embora!