O prefeito garçom na Áustria.
Hoje, gostaria de dividir com vocês uma experiência vivenciada já há alguns anos, mas que – como a maioria – me marcou muito profundamente e muito me fez refletir.
Após nossa mudança de Viena, viemos morar em uma região de vinhedos. Nessas localidades, existe o que se chama de Heurigen e que minha colega, Kely, explica aqui, de forma detalhada, o que são: basicamente, cantinas locais que vendem o produto exclusivo do seu trabalho, ou seja, o vinho por eles feito, a culinária, típica, com elementos da própria terra, enfim.
São comércios existentes há, literalmente, séculos, que garantem a permanência da tradição e a diversão dos moradores locais, pois lá é o ponto de encontro, seja no inverno, seja no verão. Atrevo-me a palpitar que o segredo de esses negócios durarem tanto se dê por conta da forma como os comerciantes, donos desses estabelecimentos, se organizam: na nossa cidadezinha, há pouco mais de 1400 habitantes. Para essa população, existem 5 maravilhosas Heurigen (cantinas). A meu ver, um número bastante elevado de cantinas para um pequeno grupo de moradores, todavia, não existe concorrência! Como???!!! Exato! Eles se reúnem e montam um calendário para o ano todo, com as datas em que cada um funcionará. Nada mais é do que um rodízio: uma semana o fulano, na próxima o sicrano e, na outra, o beltrano. Funciona excelentemente bem, com divulgação impressa e pela internet, e os vilarejos não deixam de se agraciar com o que esses locais têm de melhor o ano inteiro.
Repito: talvez, por isso, a sobrevivência longa e pacífica (os donos de Heurigen frequentam os estabelecimentos uns dos outros) desses comércios. Isso foi, porém, apenas um esclarecimento prévio para que melhor compreendam o que desejo relatar a seguir!
Leia também: Tudo que você precisa saber para mora na Áustria
Muito bem, amantes do bom vinho que somos, a cada fim de semana, quando possível, experimentávamos uma cantina diferente.
Ok! Em um belo e ensolarado fim de domingo, deslocamo-nos para mais uma nova cantina da nossa lista, estando eu, já ansiosa por experimentar os petiscos e o bom vinho. Logo que chegamos, nos acomodamos e meu marido comenta:
– Lá vem o prefeito.
Eu, até aquele momento, não sabia que ele era o proprietário daquela cantina (e isso, aqui, não é ilegal, já que não há colisão com o ofício de chefe do executivo da cidade, além do que o negócio já está, há séculos, na sua família) . Após breve esclarecimento do meu esposo a respeito, pensei – à época – ainda muito mal condicionada:
– Ah, claro. Como bom político, e negociante, ele virá aqui apertar nossa mão e jogar um pouquinho de conversa fora.
Quase caí da cadeira, entretanto, quando o prefeito se posta a nossa frente, aperta-nos a mão e pergunta:
– Pois não, qual será o pedido?
Por segundos, meu cérebro entrou em curto circuito e apaguei a informação de que aquele, que estava diante de nós, servindo as mesas como garçom, de avental, bloquinho de anotações e caneta na mão era o representante máximo da cidade!
Fizemos nosso pedido e meu esposo agradece, com um “sr. prefeito” ao final da sua frase.
Eu, voltando à realidade de forma vertiginosa:
– O quê???!!! É o PREFEITO???!!! Vestido de garçom, servindo as mesas???!!!
A resposta do meu marido foi conclusiva:
– Amor, o cargo político é passageiro. O negócio que a família dele controla, tem séculos e é de onde eles tiram o seu sustento. Por isso, certamente, ele não tem nenhuma vergonha em trabalhar, servindo as mesas de seus eleitores e consumidores! Não há nada de ilegal, nem de errado nisso! E a gestão dele é bastante satisfatória como prefeito!
Vários autotabefes imaginários dados, recompus-me do enorme e preconceituoso comentário que fiz acerca de o prefeito estar de avental, servindo mesas. Ranço terrível, infelizmente, ainda resquício da terra natal!
Hoje, no ano de 2017, essas experiências já são para mim normais, do dia a dia. Já as incorporei ao meu software de moradora daqui. Não me surpreendo mais com atitudes assim, pois elas se repetem aos montes pelo país. Essa é a normalidade deles!
Reconheço que a administração do nosso prefeito garçom é, de fato, bastante satisfatória: cidadezinha em ordem com um Jardim de Infância que atende a toda comunidade, com uma escola primária que também atende a toda comunidade, coleta de lixo exemplar, vias de tráfego excelentes e gestão transparente (ao final de cada ano, todos os moradores recebem, pelo correio, a prestação de contas municipal e o valor de eventuais serviços que sofreram reajuste para o próximo ano, além das iniciativas a serem adotadas para o próximo exercício).
Há sempre quem diga: “ah, mas é um vilarejinho de 1400 habitantes. É fácil de administrar mesmo.” Até pode ser, porém, não é a grandeza do que se administra que está em foco, e, sim, a intenção e a forma como se administra essa grandeza!
E, para confirmar o que escrevi acima e encerrar o assunto do prefeito, “gente como a gente”, trago o episódio de tê-lo – pessoalmente – visto no consultório médico, público, da cidade, aguardando em pé (o local estava lotado em razão do início das doenças de inverno), sua vez de atendimento.
Sem privilégios, sem jeitinhos. Simples e corretíssimo assim!