Algo que sempre me chamou a atenção no Chile foi a quantidade de pessoas com depressão ou que têm algum familiar ou amigo com essa doença. É bem comum as pessoas serem afastadas do trabalho devido a depressão, 26% das licenças médicas dos trabalhadores correspondem a casos dessa doença. Apesar de a depressão afetar a todos os países do mundo, no Chile a incidência dessa doença mental abrange 17,5% da população, segundo relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgado o ano passado.
Conforme este relatório, o Chile é o país com a maior incidência de depressão no mundo e o segundo do ranking de suicídios de crianças e adolescentes, ficando atrás só da Coreia do Sul. É muito comum ver o fluxo das linhas do metrô de Santiago interrompido porque alguém tentou tirar a própria vida se atirando na frente do trem. Mesmo o Edifício Titanium, maior edifício da América Latina, já foi palco de vários casos de suicídios, inclusive antes de sua inauguração.
Confesso que situações como essas me intrigam até os dias de hoje e me fazem pensar e buscar entender as razões que levam o Chile a ter essas taxas tão altas. De acordo com este mesmo relatório da OMS, as causas estariam na falta de investimento em políticas de saúde mental, as quais estariam por volta de 2% do PIB.
Além disso, os serviços de saúde de qualidade estão basicamente centralizados na cidade de Santiago o que faz com que os moradores das regiões mais afastadas que precisem de atenção médica e tratamentos especializados tenham que, obrigatoriamente, deslocar-se até a capital o que, muitas vezes, é inviável devido à falta de recursos dos pacientes e as longas distâncias.
Por outro lado, a sociedade chilena está cada vez mais fechada a novas relações sociais. Ao conversar com os pais dos colegas do meu filho na escola, me dou conta de que as famílias se reúnem muito pouco com seus familiares, mesmo estes estando na mesma cidade. As pessoas estão, cada vez mais, solitárias e desconfiadas umas das outras.
Acredito que esta desconfiança seja consequência dos anos de ditadura militar vividos pelo país. É muito difícil falar de Chile sem recorrer ao período de governo militar (1973 – 1990). A memória desses anos duros ainda é muito viva, ao conversar com pessoas comuns como taxistas, empregadas domésticas e seguranças, por exemplo, sempre se toca neste assunto. Alguns se recordam com certa nostalgia e outros com muito temor. É muito comum encontrar pessoas que conheceram alguém que foi preso ou torturado neste período. Esta memória também é passada para as novas gerações que apesar de não terem vivido ou conhecido a violência empregada nestes tempos, absorvem das memórias e estórias que escutam as mesmas inseguranças e incertezas de quem as narrou.
Foi um período de violência extrema praticada pelo Estado chileno contra seus próprios cidadãos rompendo, portanto com o dever de protegê-los. Tanta violência produziu, consequentemente, uma quebra na relação de confiança das pessoas, já que esta mesma violência era perpetrada por pessoas comuns que apesar de estarem uniformizadas como soldados ou oficiais do exército eram cidadãos chilenos, diferentes de um inimigo estrangeiro com outro idioma e outra idiossincrasia, por isso não se sabia em quem confiar, qualquer um poderia ser suspeito.
Acredito que essa desconfiança se mantém até os dias de hoje afetando as relações sociais, por isso é tão importante o investimento em políticas públicas de saúde mental, pois as pessoas estão perdendo a capacidade de se identificar umas com as outras, ou com algum grupo social ou mesmo já não se sensibilizam com os sentimentos uns dos outros, sejam positivos ou negativos. Neste caso, me arrisco a dizer que a depressão no país não só possui características físicas de algum distúrbio biológico, mas também elementos sociais, “feridas abertas” de um passado não tão distante que ainda produzem efeitos em diversas estruturas.
Outro fator que implica neste cenário é que este mesmo governo militar estabeleceu uma economia neoliberal cujas características determinam a sociedade chilena atual, um deles é o padrão de consumo. É certo que as taxas de consumo vêm aumentando no mundo inteiro, porém o que chama a atenção por aqui são as altas taxas de endividamento da população. Segundo pesquisa de 2015 da Universidad San Sebastián , 10,9 millhões de pessoas estão endividadas num país cuja população total ultrapassa os 18 milhões de habitantes. Números estes que são bastante alarmantes.
Estas taxas de endividamento podem estar relacionadas também ao crescente número de pessoas com depressão ou outras doenças mentais no país, talvez a própria falta de identificação social leve a um consumo desenfreado como forma de suprir o vazio das relações sociais. Por isso, falar de políticas públicas para a saúde mental vai além de analisar as causas biológicas do problema. É importante analisar as razões sociais que exigem um trabalho constante, amplo e de longo prazo. Apesar de essa questão do endividamento da população ser mais complexa e abrangente não se pode dissociá-la do processo de compreensão das causas de depressão do país, bem como das políticas públicas para resolver o problema.
2 Comments
Ótimo texto! Gostei bastante.
Obrigada!