“Quando o carro branco estacionou na frente da minha casa, já imaginei que seria um
problema. Feeling felino, sabe? Quando aquele moço simpático começou a me chamar
com uma voz muito boazinha, então eu tive certeza. Ele me carregou gentilmente e me
colocou numa habitação espaçosa. Era bem maior do que a outra caixa que eu conhecia.
Lá dentro estavam um cobertor que eu gosto muito, um pano fofo e água. Um
bebedouro horroroso. Insistem que eu tome essa água limpa, sem gosto, quando a única
que condiz com meu paladar é a da piscina. E claro, a água quente da banheira da minha
dona, que é meu chá da tarde.
A minha irmã mais nova, Mia, já está na caixa dela, igualzinha a minha. Ela nem liga.
Entra em qualquer lugar e acha graça. Coisa de gente jovem sabe? Acha que tudo é uma
festa. Logo tiram um monte de fotos nossas, e outro moço carrega a minha caixa. Tá
bom pessoal, já deu, me soltem, tá um solzinho lindo e quero me espreguiçar na
varanda. Mas não, eles parecem nem escutar o que eu falo. Nos colocam no carro e
fecham a porta. Já vi tudo.
Um tempo depois, chegamos num lugar movimentado, grandioso, onde nos colocam ao
lado de caixas variadas, de todos os tipos e tamanhos, que chamam de CARGA. Muita
gente olha para dentro da minha habitação. Fico bem no fundo, não olho para ninguém.
Já a Mia faz festa para todos, e ainda consegue relaxar e dormir. Como assim? Dormir
com essa balbúrdia toda nem pensar! Colam etiquetas em nossas caixas, e a chamam
de transporte de CARGA VIVA.
Transporte. Que eu saiba existe carro e bicicleta. E só. Eu não gosto dessas de duas
rodas. Minha pequena dona já tentou me levar na bicicleta dela, mas eu não curti e saltei
do cestinho no meio do passeio. Muita ousadia. Após mais um tempo, falam algo de
embarcar a CARGA VIVA. Embarcar para onde, meu Deus? Percebo outros dois gatos
e um cachorro em caixas iguais às nossas, e nos colocam todos num carrinho, que vai
dirigindo entre máquinas com asas gigantescas, brancas e de outras cores, maiores que
qualquer pássaro que já vi. Até maior do que o último presente que trouxe para minha
dona, que por sinal deu bastante trabalho para caçar, e que no fim das contas ela jogou
no lixo. Que desperdício. Humanos nunca vão entender o prazer de saborear uma boa
caça.
Aliás, já estou com fome. Mas nem sinal de comida. Aliás nem sinal de qualquer coisa.
Nos colocaram num compartimento escuro DENTRO de um dos pássaros! Sei que a
Mia está do meu lado, e o cachorro está do outro. O que será isso? Fecham a porta do
pássaro e por um tempo tudo fica calmo. Bom ao menos está tranquilo e quem sabe eu
consiga relaxar e finalmente cochilar. Até que de repente está tudo vibrando e andando
rápido, estou espremido no fundo da habitação e parece que uma força invisível me
empurra lá para atrás. Vamos cada vez mais rápido e de repente me sinto flutuando!
Meu corpo fica estranho e meu ouvido também.
Eu só sei que não gosto nada disso. Está ficando mais frio, a Mia se enroscou na coberta
e dormiu. O cachorro está mordiscando a porta da casa dele. Eu quero ir embora, já deu,
não gosto mais desse passeio. Quero dormir no meu sofá sem barulho e sem sacolejos.
Quando minha dona aparecer, vou dizer que isso não é aceitável, e ela vai brigar com
todos que me colocaram nessa situação.
Não sei quanto tempo passou. Tenho fome e sede, mas me recuso a tomar essa água em
gotas. Quero meu leite. Exijo. De novo começa a sacolejar, mais barulhos, e então um
ruído alto e seco. Nossas casas tremem. O cachorro late mais alto, e subitamente todos
os movimentos e ruídos cessam. Tudo em silêncio. E então abrem a barriga do pássaro!
E entra aquele ar… Esqueço de todo frio que passei na vida. As noites que fiquei fora de casa no inverno não eram nada comparadas ao ar congelante que invadiu minha caixa!
Foi a coisa mais paralisante que já senti. Aquilo sim era frio. E os cheiros? Eu não
reconhecia mais nada.
Nos levaram a uma sala quentinha. Vários caixas, gaiolas e uma moça médica. Então
era veterinário mesmo, eu sabia! A doutora me tira da caixa, estou desconfiado, mas ela
fala mansamente e me acalma. E fala enrolado, nossa, nunca vi alguém usar palavras tão
diferentes. E me chama de Keilou! Que porcaria de nome é esse? Não curti. Ela me
olha, me aperta, me faz um carinho na cabeça e diz “good boy”. Sei lá o que significa.
Depois é a vez da Mia e dos outros. Nos colocam comida, mas por algum motivo perdi
o apetite. Não gosto de comer nessa baderna. Passa o tempo, e um a um os pets vão
sendo levados. Só resta eu e a Mia. Porque tudo demora mais para nós?? Cadê a nossa
dona?
Colocam mais papéis e etiquetas nas caixas e finalmente é a nossa vez. Já estou feliz em
ver o sol e vou até me espreguiçar, mas não gosto nada do que vejo. Outro pássaro não!
Prometo, juro, jamais caçarei outro ser voante, mas por favor me mandem para casa!
Ninguém me ouviu. Escuridão, caixas adentro, portas fechadas e barulhos de novo.
Dessa vez só eu e a Mia. Até para ela que é festeira, já perdeu a graça. Definitivamente
não gostamos mais desse passeio.
Pelo menos dessa vez foi rápido. Mal passamos medo e já nos tiraram da barriga do
pássaro. Acho que foi minha promessa. Já é fim de tarde, e nos levam a outro depósito.
Outras pessoas. Mais frio. Já estou fraco de fome. Acho que o cansaço vai me vencer.
Não quero dormir, estou infeliz e entristecido. Por que fizeram isso comigo?
Escuto mais vozes. Estou cansado, mas algo me alerta. Vozes, sons agudos e Caillou!
Opa, esse é meu nome. Mas como sabem? E falam parecido com os pequenos donos,
mas eles estão tão longe. Caillouuuuuuuuuuuuu!! Um rostinho familiar se cola na grade
da minha habitação. É meu pequeno dono! Como eles vieram parar aqui? Será que o
pássaro gigante pegou a família toda? Minha pequena dona quase chora! Ela está
abraçada na casa da Mia. Como é bom ver vocês! Minha família amada!
Só voltei a ronronar dentro do carro, no colo da minha dona, o lugar onde mais gosto de
estar no mundo. Que bom que nos resgataram! Que bom que vamos voltar para nossa
casinha! Certeza que o frio vai passar e ainda hoje vou dar um rolê e caçar umas baratas.
Espera aí!
Que casa é essa??”
3 Comments
Adorei o artigo, Jenny! Moramos nos EUA e temos 2 gatos que foram adotados aqui. Pensamos nos mudar para o Brasil no futuro, você poderia nos dar informação do processo de transporte? Obrigada!
Oi Daiane! Claro, quando precisar me avise! Tenho o contato de uma empresa no Brasil (que trouxe meus gatos para cá) e outra americana, que provavelmente levará os 3 (adotei mais um aqui) de volta. Essa opção através de empresa é mais cômoda mas também mais cara, a outra é você viajar levando o gato com vc na cabine, em companhias aéreas como a Delta que aceitam animais. Se precisar de mais detalhes é só perguntar! Um abraço!
É, Jenny, seu dom de escrever é mesmo demais! Escrever como se fosse o gato é muito lindo e interessante! Eu simplesmente amei! Que dom maravilhoso, porque para ser sincera eu acho que escrever muitos aprendemos, más ter esse dom, deve ser limitados à pessoas especiais e voce é uma delas! Amei o livro que sua tia à Jill escreveu dos ” cinquenta Viralats,” creio que é o titulo. Também achei que ela tem um dom. Amei o livro e à maneira como foi escrito! Agora ler sobre o transporte dos gatos do Brasil para os USA, foi mesmo legal!
Tudo de bom e estou aqui anciosa para ler mais e mais textos!
Uma leitora super fâ sua! Dalva