Quando falamos em religião por esses lados do mundo nossa cabeça nos remete imediatamente aos rituais pagãos nórdicos e aos livros de J.R.R. Tolkien e suas personagens míticas. Pensamos nos deuses nórdicos como Odin e Thor e raramente nos perguntamos como essas tradições se perderam no tempo e deram lugar a tradições cristãs, como o Natal, que eu afirmo ser a maior festa na Dinamarca. Para entendermos um pouco é preciso que voltemos no tempo, mais precisamente para a era Viking, e falemos um pouco de história.
Na era Viking a maior parte da Europa já tinha abraçado o cristianismo, porém na Dinamarca e em todo o mundo nórdico a religião era ainda constituída pelo culto pagão a divindades que se assemelhavam com os humanos e cujos ritos reverenciavam o culto à natureza e seus ciclos: vocês já devem ter ouvido falar de pelo menos alguns deuses nórdicos como Odin, Thor, Loke, Freya; das entidades conhecidas como Valquírias; ou da árvore da vida e dos 3 mundos, Yggdrasil; ou do reino dos deuses, Asgård. Todos esses deuses, entidades e símbolos faziam parte da tradição religiosa nórdica.
Porém, entre os anos 700 e 800, missionários cristãos iniciaram uma série de visitas ao país para difundir sua fé. Juntamente nessa época se iniciou um comércio muito forte entre os países nórdicos e o mundo cristianizado. O cristianismo na Alemanha também influenciou no processo, já que os habitantes da região de Schleswig, parte da Jutlândia atualmente alemã e pertencente na época à Dinamarca se cristianizaram. A consequência disso foi que pouco a pouco se passou a incorporar os ideais cristãos e as crenças e rituais pagãos foram gradualmente sendo substituídos pelas crenças e rituais cristãos; por volta do ano 1080 a maioria do povo viking já havia se convertido ao cristianismo, que primeiramente funcionou como um complemento ao culto aos deuses nórdicos e mais tarde ganhou sua importância, com rituais como batismo sendo adotados massivamente até a completa substituição de uma fé pela outra.
O responsável pela oficialização do cristianismo na Dinamarca foi o rei Harald Blåtand ou Haraldo Dente Azul, conhecido em inglês como Harald Bluetooth (sim, o dispositivo eletrônico foi nomeado em homenagem a ele e é por isso que o símbolo do dispositivo são o h e b escritos juntos em letras rúnicas). A referência dessa oficialização, datada do ano 935, está gravada na pedra rúnica conhecida como Pedra de Jelling, localizada ao sudoeste da Dinamarca e reconhecida pela UNESCO como um dos patrimônios da humanidade. Bluetooth foi rei da Dinamarca e Noruega e seu pai, Gorm, o Velho, foi o primeiro rei dinamarquês reconhecido pela história. A pedra é também conhecida como ‘atestado de batismo’ da Dinamarca, já que foi ali que se mencionou pela primeira vez a palavra ‘Dinamarca’ como nome para o país.
Mais tarde, a Alemanha rompeu com a Igreja Católica Apostólica Romana na figura de Martinho Lutero e suas 95 teses, fundando a Reforma Protestante que gerou a igreja protestante evangélica luterana. A Dinamarca passou a adotar o protestantismo com o rei Christian III por volta de 1536, logo após a dissolução da União de Kalmar, que unificava sob um mesmo reino Suécia, Noruega e Dinamarca e incluía os territórios da Finlândia, Islândia, Groenlândia e as ilhas Faroé, Orkney e Shetland. A igreja evangélica luterana gerou a atual Igreja do Povo Dinamarquês (Den Danske Folkekirke), assim oficialmente denominada pela constituição dinamarquesa promulgada em 1849. Atualmente cerca de 78% da população dinamarquesa é membro da Igreja do Povo Dinamarquês.
A igreja nacional toma conta de alguns segmentos da vida civil como registro de nascimentos e óbitos e troca de nome civil, além dos ritos cristãos oficiais como batizados, casamentos e confirmação, algo como a crisma católica. Todos os membros da família real têm por obrigação serem membros da igreja nacional – existe um decreto-lei determinando isso e os estrangeiros casados com membros da família real são obrigados a se converterem – porém, para os demais súditos da rainha a filiação é espontânea. Todas as pessoas que são filiadas a essa igreja devem pagar, em março de todos os anos, junto com o imposto de renda devido ao Estado, um imposto correspondente a 0,88% do valor devido do imposto de renda. Esse imposto garante algumas atividades da igreja como compra de material para a celebração dos rituais tradicionais, ajuda social, entre outros; no site da igreja nacional pode-se ver para onde vai o dinheiro. Somente os membros pagam o imposto de 0,88%; é perfeitamente possível desligar-se da igreja quando a pessoa quiser, sem precisar pagar nenhuma taxa pelo desligamento.
Apesar de a igreja controlar os registros civis, eles podem ser utilizados normalmente por todas as pessoas residentes no país, independentemente de serem ou não membros da igreja. E mesmo que você não seja membro também pode se casar e/ou batizar seus filhos nela, se assim o desejar, desde que o seu cônjuge seja membro.
A igreja dinamarquesa é uma das mais liberais e abrangentes do mundo. Tanto homens quanto mulheres podem se tornar pastores ou bispos, e igualmente é permitida e legal, desde 2012, a celebração de casamento religioso de pessoas homoafetivas. Aos clérigos também é permitido se casar e ter filhos, de acordo com o que acontece na igreja luterana.
Alguns rituais da igreja acabaram sendo incorporados à vida dos cidadãos, como é o caso da confirmação. Confirmação é o ato da primeira eucaristia oficial, quando o adolescente que completa 14 anos é convidado a confirmar sua fé cristã diante da igreja. Esse ritual, entretanto, esconde na verdade uma faceta extremamente consumista: é costume dar presentes caros e dinheiro aos confirmandos, além de uma festa com muita fartura – e gastos astronômicos – patrocinada pelos pais. A maioria dos jovens sequer se importa com a fé: eles só optam pela confirmação para ganhar o dinheiro e os presentes. Todos os anos, nos sábados dos meses de março a maio, milhares de jovens são confirmados nas igrejas ao redor do país e é tradição o Blå Mandag, a segunda-feira após a confirmação onde os jovens vão para as ruas com os colegas ‘confirmandos’ gastar o dinheiro que ganharam dos convidados da festa. A confirmação se tornou uma tradição tão forte que existe um site inteiro dedicado ao assunto, com informações a respeito do que é a confirmação, sugestões para a festa e sobre onde gastar o dinheiro depois do evento.
Mesmo sendo a Dinamarca um país onde a religião não influencia as decisões políticas, o cristianismo é a religião oficial da família real dinamarquesa e, consequentemente, do país; porém vemos por aqui diversas outras religiões e seus praticantes possuem total liberdade para professar sua fé, pelo menos por enquanto. Embora o luteranismo seja forte no país, o número de pessoas que se declaram sem religião e/ou que se desligam da Danske Folkekirke tem aumentado todos os anos e o cristianismo tem perdido fiéis para outras religiões e crenças alternativas.
Mesmo com o alto índice de pessoas que se declaram cristãs, o país não é religioso. Grande parte das pessoas não vai à igreja, não reza e não se importa com os rituais. Contudo, esse fato não impede que as pessoas tenham uma vida plena e feliz.
Desde 2009 a Universidade de Aarhus conduz diversos estudos acerca da religião na Dinamarca e seu impacto na sociedade local. O pesquisador estadunidense Phil Zuckerman, que foi professor convidado por 14 meses nessa universidade, fala a respeito da não-religiosidade no seu livro “Sociedade sem Deus”, onde descreve os resultados de sua pesquisa com 150 dinamarqueses e suecos e suas impressões a respeito da falta de religião e seu impacto nas sociedades escandinavas, sobretudo em questões onde a religião tem papel relevante como a perda de entes queridos e vida após a morte, por exemplo, e parâmetros morais ditados pelas religiões e que podem ditar as regras sociais de um país ou cultura.
14 Comments
Fantástico texto Cris… Alguns estudiosos hebreus acreditam que as tradições da Dinamarca vieram da tribo israelita de Dan e dai “Danmark” ou “Den-mark” – A Marca de Dan, cujo simbolo era uma serpente (Serpente de Midgard, chamada Jormungand). Muito bom….
Obrigada pelo comentário, querido!
Cris, adorei o texto! Super informativo e relevante! Beijos
Obrigada! Beijos 🙂
Oi, Cristiane Leme!
Me desculpe pela mensagem enviada pelo bate papo do Facebook.
Antes eu havia enviado duas mensagens por esse campo aqui, mas deu erro. Por isso, recorri ao facebook.
Quanto à sua resposta, muito obrigado pela atenção, foi muito útil. Vou ler o seu texto sobre o custo de vida na Dinamarca. Abraços e sucesso!
Irlã, não tem problema. Espero que a leitura de outros artigos meus aqui no blog seja igualmente útil para vocês no planejamento de suas férias. Vocês vão adorar a Dinamarca! Abraços e continuem nos acompanhando! 🙂
Muito bom o texto, eu só queria fazer uma ressalva:
“Apesar de a Dinamarca ser um país laico, o cristianismo é a religião oficial da família real dinamarquesa e, consequentemente, do país”
Ter uma religião oficial faz com que o país não seja laico. A Dinamarca não é um país laico, é um país confessional (não confundam com teocrático). Desta forma, é como você colocou, o Estado tem uma religião oficial, contudo, há ampla liberdade para que os cidadãos professem a fé que bem entenderem.
Hugo, obrigada por ler e comentar, e obrigada pela observação. Farei a devida correção no texto.
Continue nos acompanhando!
ACRESCENTOU BASTANTE PARA NOSSO CONHECIMENTO, MUITO OBRIGADO. É GRATIFICANTE CONHECER A HISTÓRIA DINAMARQUESA.
Obrigada pelo comentário. Aproveitando, deixo um toque que talvez você nem saiba: escrever tudo em maiúsculas na Internet significa gritar 🙂
Oi Cris!
Eu tenho 12 anos e eu e minhas amigas fisemos um trabalho da escola e o nosso país foi a Dinamarca! Eu tive a sorte de procurar informações sobre o país, e adorei seu site obrigada pelas suas imformações, pra nós foi beeem útil.
Que bom que foi útil para vocês! Obrigada por ler e comentar ????
Muito legal o seu texto. Como religioso, achei curioso mas ao mesmo tempo triste essa associação da confirmação ao consumismo. Não deveria ser assim, as pessoas deveriam se confirmar de forma sincera e não procurando outros objetivos. Bom, cada um com sua opinião.
De qualquer forma, achei o blog bem interessante, passarei a ler mais posts. Obrigado!
Eu acho na verdade hipócrita, isso de se confirmar só pela festa e pelos presentes. É o que por aqui se chama de moral dúbia, ou o nosso ‘faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço’.
Obrigada por ler e comentar, e fique à vontade para ler outros textos. Tenho mais dois falando sobre religião na Dinamarca.
Abraços