Aspectos do aborto na Dinamarca.
O aborto é um tema espinhoso em qualquer parte do mundo. Graças ao feminismo esse tem sido um assunto em pauta em vários países. Recentemente a Irlanda e Argentina, países reconhecidamente de maioria católica, aprovaram a legalização do aborto livre. No Brasil a discussão é calorosa e frequentemente baseada em conceitos filosóficos, morais e éticos ou de origem religiosa que defendem a vida a partir da concepção em detrimento da vida e sanidade mental da mulher.
Entretanto, precisamos falar do assunto, e já que estou na Dinamarca, um país conhecido por suas políticas de equidade, nada melhor do que contar a história de como o aborto foi legalizado por aqui e como funciona atualmente.
A proposta desse texto é informar. Partindo daí, a primeira informação que dou é que nenhuma mulher no mundo deseja abortar. Nenhuma, mesmo.
As que se decidem pelo aborto têm razões muito profundas e o processo – desde a tomada de decisão ao aborto em si – é conflituoso, dolorido e sofrido, sobretudo nos casos em que a mulher não recebe apoio das pessoas mais próximas.
O aborto é um procedimento invasivo e pode deixar sequelas tanto físicas quanto emocionais. Decidir-se pelo aborto é uma faca de dois gumes, com consequências psicológicas e sociais bastante importantes e por vezes severas para as mulheres que vêm de culturas machistas e religiosas.
Leia mais: Maternidade na Dinamarca
O senso comum, influenciado pelo machismo e pela moral religiosa, culpa exclusivamente a mulher pela concepção e nessa onda atribui exclusivamente a ela a responsabilidade por tudo o que diz respeito à criança. Raramente se vê alguém considerando o significado psicológico e social da decisão e do procedimento em si para as mulheres dentro dessas culturas.
Voltando ao nosso tema, vou contar pra vocês um pouco da história de como o aborto foi legalizado e como funciona o procedimento na Dinamarca. Peço que leiam sem prejulgamentos e sem preconceitos, lembrando que é imprescindível conhecer os vários lados de um assunto para construir um argumento e formar uma opinião.
Como tudo começou
O parlamento dinamarquês assinou a lei que legaliza o aborto livre em 13 de junho de 1973, tendo sido um dos pioneiros na Europa Ocidental. A lei se tornou efetiva em outubro do mesmo ano e a partir dessa data toda mulher residente legalmente no país pode se decidir por interromper uma gravidez gratuitamente, usando o serviço público de saúde, até a semana 12 de gestação. Mas nem sempre foi assim.
Até 1886 se punia com pena de morte tanto a mulher que abortasse quanto alguém que facilitasse um aborto no país. A partir desse ano a pena foi reduzida a 8 anos de reclusão, passando a 2 anos na década de 1930 e sendo finalmente abolida na década de 1970.
A partir de 1937 o aborto podia ser feito legalmente se apresentadas razões médicas, éticas ou eugênicas: trocando em miúdos, a lei amparava abortos realizados para a manutenção da saúde física e psicológica da mulher e também em casos de incesto ou estupro, ou mediante malformações congênitas que impedissem o desenvolvimento do embrião em uma criança considerada normal e saudável. Entretanto, a discussão sobre o aborto livre começou no país já na década de 1920, de carona com os ideais de liberdade e liberação sexual da época.
O aborto ilegal era um procedimento conhecido e disseminado por todo o país antes da lei do aborto livre. Feito de forma arriscada e com custos altos, podia inclusive custar a vida da mulher que se submetia a um aborto “de mesa de cozinha”, como era conhecido. Milhares de mulheres morreram ou sofreram outras consequências dos procedimentos clandestinos.
Leia mais: Feminismo na Dinamarca
Na década de 1960 começaram a surgir protestos e movimentos pela legalização do aborto livre. Ativistas chegaram a organizar viagens com mulheres que desejavam abortar para países como Inglaterra e Suécia, onde as leis eram mais favoráveis. Depois da legalização da pornografia na Dinamarca no final dessa década, a pressão pela legalização do aborto aumentou no país, com grupos feministas se mobilizando e provocando o aprofundamento no debate, culminando com a legalização no início dos anos 1970.
Os argumentos pró-aborto se baseavam principalmente na questão da equidade de gênero, mas sobretudo no direito da mulher de exercer controle sobre o próprio corpo e no ideal de planejamento familiar. Já os opositores argumentavam que o aborto livre poderia causar um aumento da promiscuidade e destruição da moralidade sexual, além de um aumento no número de procedimentos. Já viu esse filme antes? Pois é…
As pessoas contrárias ao aborto previam um aumento vertiginoso no número de procedimentos após a aprovação da lei. Porém, seguindo uma tendência mundial em todos os países onde o aborto livre é legalizado, o número de procedimentos realizados por ano tem se mantido estável desde a aprovação da lei, ficando na casa dos 15-16 mil procedimentos/ano. Ou seja, não houve o aumento tão temido e previsto pelos conservadores. Segundo pesquisa realizada pela universidade de Aarhus, nos últimos dois anos a tendência é de queda no número de procedimentos anualmente realizados no país.
Como tudo acontece
Na Dinamarca é permitido o aborto livre entre as semanas 1 e 12 de gravidez. O procedimento pode ser cirúrgico ou medicamentoso, dependendo do tempo de gravidez e do que trará mais conforto e segurança para a mulher.
Assim que descoberta a gravidez, a mulher deve procurar seu médico de família, decidindo pelo término ou continuação e acompanhamento da gestação. Quando se decide pelo término, há um período de aproximadamente uma semana entre a comunicação da tomada de decisão e a realização do procedimento em si. Nesse período é oferecido um acompanhamento médico e psicológico à mulher. Em nenhum momento a mulher é obrigada a justificar os motivos de sua escolha.
Depois de comunicar o médico de família sobre sua decisão de abortar, a mulher é encaminhada para um exame físico onde se comprova o tempo de gestação e se tiram dúvidas sobre os tipos de procedimentos; ali também se decide se o aborto será cirúrgico ou medicamentoso, de acordo com o que for melhor para aquela mulher. Muitas acabam desistindo de abortar após esse exame.
Leia mais: Sistema de saúde na Dinamarca
As que decidem continuar recebem as pílulas abortivas logo após o exame, no caso de optarem pelo aborto medicamentoso, e as que decidem pelo aborto cirúrgico agendam a data da cirurgia. Em ambos os casos, todas as dúvidas são esclarecidas e o apoio de psicólogos e grupos de discussão sobre o aborto é oferecido.
Se optar pelo aborto medicamentoso a recomendação é de se administrar o medicamento logo após o exame e esclarecimento de dúvidas. O aborto medicamentoso só é recomendado até a semana 8. Da semana 8 à 12 o procedimento tem de ser cirúrgico.
Todos os riscos e consequências do aborto são devidamente explicados para a mulher, que tem oportunidade de perguntar e sanar todas as dúvidas. Caso seja estrangeira e não fale dinamarquês, ela tem direito a um intérprete nas consultas. Não existe obrigatoriedade de prosseguir com o aborto caso a mulher mude de ideia antes do procedimento. Recomenda-se que a mulher fale com os psicólogos, com pessoas dos grupos de apoio e com sua família a respeito de sua decisão o quanto antes, para ter certeza de que é isso que realmente quer.
A mulher é tratada com respeito antes, durante e depois do procedimento e sempre seu bem-estar físico e mental são colocados em primeiro lugar, o que é muito importante.
Igualmente importante é falar sobre prevenção e planejamento familiar. Por isso, antes e após o procedimento a mulher é orientada sobre métodos contraceptivos – normalmente junto com seu parceiro, se ela tiver um. Aí também pode-se decidir por um método contraceptivo e receber orientação sobre como utilizá-lo. Esse passo é vital na prevenção da reincidência de abortos.
Leia mais sobre aborto na Dinamarca (apenas em dinamarquês) em:
- Abortlinien – rede de apoio para mulheres que engravidaram indesejadamente e que consideram um aborto, ou que já abortaram
- Sex og samfund – rede de orientação e educação sexual para jovens
- Mødrehjælpen – rede de apoio para mães e pais
- Sundhed.dk – site ligado ao sistema de saúde pública da Dinamarca