Ao pesquisar sobre a saúde mental dos imigrantes, percebi o quanto esse tema é pouco explorado. As poucas pesquisas existentes são basicamente da Europa, muitos desses estudos em Portugal, que também já conta com serviços específicos de acolhimento psicossocial para “imigrantes”. Na Nova Zelândia, os estudos, ainda pouco aprofundados, voltam-se mais às estatísticas de cidadãos de origem asiática e ilhas do Pacífico, quanto ao uso de serviços específicos de saúde mental.
Esse tema segue pouco esgotado e de longe muito pouco discutido. Os imigrantes se encontram em toda parte, alguns grupos étnicos em maior quantidade, outros nem tanto, mas o fato é que estão espalhados pelo mundo, e alguns países contam com importante contribuição econômica e de mão de obra de pessoas vindas de outros lugares, como aqui na Nova Zelândia.
Quem são os imigrantes?
Em linhas gerais sabemos sobre processo de imigração do ponto de vista econômico, político e administrativo. Sabemos o impacto da presença de imigrantes no mercado de trabalho, nos serviços de educação e saúde. Estamos nas estatísticas, somos um grupo facilmente generalizável pelos números.
Muito pouco se fala do aspecto da subjetividade do imigrante e esse tem sido identificado com um dos principais fatores de risco para a saúde física e mental. Além da quebra com os principais referenciais que constituem nossa identidade, precisamos lidar com a perda do reconhecimento enquanto uma pessoa única para se tornar uma estatística, mais um representante de um grupo étnico. Alguns autores usam a expressão “morto-vivo” ou então “recém-nascido” para descrever esse processo de imigração em seu período mais desafiador.
Existe um luto no processo de imigração, na verdade vários. São inúmeras mudanças e a perda de um pertencimento social que nos define. Estamos suspensos entre dois mundos e numa luta constante e solitária da reinvenção de si próprio. Nos tornamos órfãos da nossa própria cultura e identidade.
Por que imigrar?
Podemos nos questionar, mas por que então imigrar? Essa pode ser uma reflexão espontânea especialmente a quem contempla esse processo como mero espectador, porém a resposta não é tão simples. Inúmeros são os motivos que levam as pessoas a romperem essa barreira territorial e cultural, desde convicções pessoais até sobrevivência. O fato é que sempre o fizeram, as migrações são tão antigas quanto a própria história da humanidade. Fenômeno complexo e até hoje pouco compreendido.
Essa visão que a princípio pode parecer negativa é na verdade o aprofundamento de uma visão muito reducionista sobre os imigrantes e que seria um dos maiores motivos de surgimento de problemas de saúde mental após a imigração. As experiências de imigração são muito diversificadas assim como existem diferentes maneiras de “ser imigrante”, pois atrás de cada um existem histórias de vida absolutamente diferentes, com convicções e valores muito pessoais atribuídos à própria imigração. Em outras palavras, generalizar um imigrante é desconsiderar todo um histórico de vida e suas principais motivações para a imigração.
A Síndrome de Ulisses, também conhecida como síndrome de imigrantes com o estresse crônico e múltiplo é um grande exemplo da forma generalizada como imigrantes são vistos e identificados. Essa expressão foi criada pelo professor e psiquiatra catalão Joseba Atxotegui ao se referir aos inúmeros lutos com suas perdas e separações que os imigrantes enfrentam em sua experiência de imigração e o sofrimento que pode estar associado a esse luto. O maior problema dessa visão é que desconsidera a verdade de cada sujeito, sua história e o que veio a desencadear aquele sofrimento.
A experiência de “desconexão” com seus principais referenciais pode ser bastante dolorosa, mais para uns menos para outros, porém uma visão fria e generalista acerca do sofrimento não será a solução e sim a manutenção deste. A construção de um caminho de reconhecimento e validação da subjetividade, que seria o inverso da visão da Síndrome de Ulisses, parece ser o resgate e o caminho pra essa cura. O compartilhamento da identidade e o acolhimento através de novos enlaces sociais permite que o imigrante saia dessa condição de mera estatística e suspensão entre dois mundos para a verdadeira inserção comunitária.
Cuidados com a saúde mental
As metas graduais podem ser um excelente caminho para resgatar esse senso de pertencimento social. Pode existir uma pressão interna ou externa para que ocorra rapidamente um resgate dos antigos referenciais e conquistas, porém a flexibilidade e a manutenção dessas metas vão permitir que se tenha o tempo necessário para cada passo, levando em conta suas características pessoais e não um prazo a ser seguido, o que pode gerar muita ansiedade.
Procurando por psicólogas brasileiras pelo mundo?
A construção de novos enlaces sociais será determinante para esse processo, porém precisam ocorrer de forma natural e autêntica. A pressão por pertencer a um grupo pode gerar desagradáveis decepções e não irão suprir e ajudar no luto do processo de imigração. Planejar atividades, explorar hobbies, mesmo que pela primeira vez pode ser o caminho para as conexões sociais mais autênticas e verdadeiras. Pessoas que compartilham dos mesmos gostos e hobbies podem construir mais facilmente uma relação genuína de amizade e principalmente baseada na reciprocidade.
Saber identificar em si mesmo um momento de vulnerabilidade é muito importante para prevenção e também melhora de algum sofrimento emocional ou de algum quadro de stress, relacionado à adaptação a vida de imigrante. Sabemos que existe uma fantasia muito negativa, reforçada socialmente acerca da saúde mental. Em um processo de imigração pode ser ainda mais delicado devido à falta do background com profissionais locais ou ainda pela visão reducionista da síndrome de Ulisses. Independente disso, procurar ajuda de um profissional preparado pode ser um excelente caminho para um período mais crítico e não há nada que desabone essa decisão. Pessoas que identificam a necessidade de ajuda numa situação crítica como essa tendem a ter desfechos muito positivos.
O maior sucesso nesse processo ocorre com as pessoas que genuinamente passaram pelo “limbo” da imigração e vivenciaram sem medo e vergonha o doloroso luto ou os “lutos” do caminho.
Atravessar as fronteiras do país e da identidade não será fácil, mas negar essa complexidade não irá ajudar, viver com plenitude essa mudança poderá ser a melhor forma de se reinventar e encontrar novos significados na vida.
6 Comments
Olá, Vanessa.
Que alívio eu senti ao ler seu esclarecedor artigo. Muito obrigada, de coração!
Fico feliz ao saber que estou no caminho certo. Antes de imigrar para a Nova Zelândia, eu procurei ajuda profissional, li diversos testemunhos e alguns escassos artigos sobre o assunto. Mas estou seguindo as orientações da psicóloga e tenho permitido-me errar, frustrar-me e me reerguer – após um período de reflexão.
Compreender o processo histórico da migração humana, como você mencionou, também ajudou-me. O conceito de territorialismo (o qual foi e é a origem de muitas guerras, infelizmente) teve de ser, para mim, desmistificado e substituído pelo conceito de me tornar cidadã do mundo e de estar aberta a desbravar novas culturas, experiências e relacionamentos agregando-os à minha base, à minha história. Esse foi um processo que eu levei (e ainda estou levando!) tempo para deglutir pois fui educada em um círculo patriótico muito forte. E vários outros exercícios mentais seguiram-se, inclusive o apuramento da sensibilidade para me antever a uma queda emocional drástica. Tenho experienciado que ter a ferramenta emocional certa à diaposição é um fator de sobrevivência.
Enfim, imigrar e permanecer imigrante é se permitir mutar. E tal qual a borboleta, não dá para negar que é um processo dolorido.
Obrigada, mais uma vez!
Olá Marcela! Adorei seu relato e achei muito bonita sua trajetória, parabéns! Obrigada pelo seu retorno, é muito gratificante e muito importante para todos nós! Estou na torcida por vc! Grande Abraço!
Olá Vanessa!! Parabéns pelo artigo. Meu nome é André Wink, iniciei Psicologia há pouco tempo, e quero muito explorar as temáticas que referem-se à refugiados e imigrantes. acredito que nosso papel na psicologia é compreender a subjetividade, contribuir cientificamente, desmistificar o senso comum, mas a partir disso, deixar um legado. Passei muito tempo em outros caminhos. Quero poder ajudar pessoas nessas condições subjetivas a (re) construirem uma identidade, a superarem seus lutos, ajudar quanto à saude mental destas, pois a sociedade não está preparada para ajudar essas pessoas que tem as mesmas necessidades, sonhos e desejos que qualquer outro sujeito inserido em uma cultura e crença diferentes. Desde a falta de estrutura para acolhimento, a dificuldade na comunicação, da língua e do atendimento à saúde, enfim… a lista é muito grande e é uma questão preocupante no mundo todo, veja que países desenvolvidos também não estão sabendo lidar com a situação de vulnerabilidade destas pessoas. E finalizando, se você puder enviar algo sobre a questão do luto na imigração ou perda da identidade, trocar algumas informações nesse sentido. Agradeço. Abraço.
Olá Andre,
A Vanessa Coelho Trajano, infelizmente, parou de colaborar conosco.
Obrigada,
Edição BPM
Olá,
Gostaria de aber qual a linha de tratamento em psicoterapia mais usada na Nova Zelândia.
Parabéns pelo artigo!!
Olá Fabiana,
A Vanessa Coelho Trajano, infelizmente, parou de colaborar conosco.
Obrigada,
Edição BPM