Ser uma brasileira pelo mundo me fez feminista. Explico:
Vamos ao passado. Eu era uma típica mulher brasileira, classe média paulistana, ex aluna de colégio de freira, com nome sugestivo, Virgem Poderosa! Não, eu não estou brincando…
Engravidei, estudei, casei, exatamente nessa ordem. Trabalhei e criei minha primeira filha, com a imaturidade e as inseguranças que só quem é mãe precoce poderia entender. Vieram depois mais duas, meninas, para completar a liga.
Vim de uma família machista, apesar de ter perdido meu pai aos 12 anos de idade e ter uma mãe liberal, no sentido positivo da palavra. Acontece que ser de classe média, família de cunho religioso, por mais que o discurso seja outro, não dá para não ser machista. Até hoje me lembro de um tio querido, que me convenceu a adotar o sobrenome do meu marido, porque isso era o “certo a se fazer”. Uma das decisões que mais me arrependo. Não o marido, nem o casamento, mas o nome… Nunca mais me senti eu mesma, carregando um sobrenome que não me diz de onde vim.
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Ok. Acelera tempo e vamos para os anos 2000. Continuo no Brasil, a classe social aumentou um degrauzinho, posso me definir como classe média alta. Trabalho, estudo, saio e viajo sozinha com as amigas e jamais me considero machista. Nos almoços e reuniões de mulheres nos julgamos independentes. Mas chegamos em casa, e apesar de toda ajuda doméstica (feita por outras mulheres), sobram todos os cuidados com as crianças na nossa conta. Pediatra, dentista, escola, amigos, etc.
Vejam, meu marido é 10! E sempre foi super parceiro, mas não adianta, o cerne da cultura brasileira ainda define a ferro e fogo esses papéis. Me lembro também com pesar, de muitas vezes, entre mulheres, falarmos mal de mulheres. Não sermos parceiras verdadeiramente. Me lembro das piadas sexistas em jantares e almoços, e me embaraço por ter rido também. Me lembro de achar que estava sendo uma super empregadora, por pagar um extra para minha funcionária, e sacrificar a sexta-feira dela, em prol da minha.
São coisas que me envergonho. Mas prefiro encarar. Olhar nos olhos da mulher que fui e reconhecer, através de tantos erros, que esse modelo não me cabe mais!
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Mas como mudei? A mudança se deu de forma radical. Saí do conforto de um condomínio fechado paulistano, para o subúrbio da capital dos EUA. Logo no primeiro inverno, um choque! Marido viajando muito a trabalho e ninguém, NINGUÉM, para ajudar. A garagem quebra no meio da tempestade e eu fico presa, com a caçula com febre alta, sem ter ideia de como chegar na farmácia. Não tem babá, não tem vizinho, não tem ninguém. O inglês é manco e com muito custo consigo um técnico para destravar o portão.
Depois dessa, vêm outras muitas situações, que nem merecem ser narradas, mas me fizeram pensar o tamanho do “privilégio” que eu tinha no Brasil. Aqui, em um piscar de olhos, viramos minoria. Não importam seus dólares no bolso, seus ‘status migratório’, sua cor de pele. Somos brasileiros, somos latinos, somos minoria. Mesmo você, que passa férias em hotel estrelado na Times Square, está dentro dessa categoria. Por favor aceitem, porque continuar a negar isso é no mínimo cafona…
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Somos os migrantes nordestinos, somos os favelados de educação precária que não dominam o idioma, somos as mães que se dividem em mil sozinhas enquanto o marido trabalha o triplo que trabalhava no Brasil, somos os pretos – porque para ser branco é preciso ser loiro e de olhos azuis – desde que ninguém veja seu passaporte e descubra que você nasceu na América Latina. Somos a força que trabalha, estuda, cuida da casa e da família, sem amiga para dividir o tranco, avó para convidar para o almoço de domingo, ou vizinha para dar uma olhadinha.
Uma surpresa: até mesmo as americanas, nascidas e criadas aqui, não contam com esses privilégios. Muitas enfrentam triplas jornadas, entre casa, educação e emprego, sem licença maternidade e sem dinheiro para pagar uma babá, nem quando estão à beira de um colapso!
A neve cai e elas estão lá, prendendo bebês nas cadeirinhas do carro, se equilibrando entre a compra de fraldas e a criança que corre, atendendo o chefe no celular e dando a mamadeira para a filha. São muitos pratos para serem equilibrados.
A boa notícia é: conseguimos! Apesar do estresse, da dor e da solidão, damos conta do recado. Não sei se é justo, não sei se é honesto, mas a nossa força e a nossa resiliência nos fazem verdadeiras heroínas de situações que lembram filmes como Missão Impossível.
Ainda há inadequação salarial, ainda há leis retrógradas que querem definir nossas escolhas, ainda há violência e negligência. Mas não dá mais. Não dá para tomar café com a amiga e fingir que essa realidade não existe. Não dá para rir da piadinha do sogrão, que insiste que toda mulher é burra. Não dá para se submeter a papéis inferiores perante àqueles que deveriam ser parceiros e equivalentes. Não dá para aplaudir políticas que querem impor modelos que já eram antiquados nos anos 50!
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Vivemos uma nova sociedade. Mais informada, mais conectada, mais globalizada. Uma sociedade em que a força de trabalho feminina é fundamental para pagarem-se as contas. Vivemos tempos em que não deveria ser mais preciso queimar sutiãs em praças públicas, ou exigir que deputados e senadores não interferiram no nosso direito de escolha, simplesmente por sermos mulheres. Nada justifica, em 2018, sermos ainda violentadas ou agredidas, e mais grave ainda, por sermos o sexo de força física mais frágil.
Não dá para não ser feminista. Se você ainda não aderiu a essa causa, que passa longe do estereótipo de Che Guevara, que querem nos imputar, você perdeu o bonde da história. Pense nos seus filhos, pense nas suas filhas. São ambos seres humanos, merecedores de um futuro mais digno, independente de seus gêneros (ou orientações) sexuais. Vamos progredir?
Até a próxima!
1 Comment
Gabi! Que texto lindo! Eu senti nele a mesma coisa que sinto sempre, aquele certo orgulho e honra de ser uma mulher que, mesmo sob diferentes dificuldades, segue sempre firme. Um pouco diferente de ti, eu vim de uma família totalmente aberta, que sempre valorizou o feminismo e nossa independencia. No entanto, sempre vivi em um ambiente com comportamento oposto, trabalhei em empresas onde a participação das mulheres era mínima, nossa opinião nunca valia nada, até pensava que não havia mais o que fazer… Então eu vim viver e trabalhar na Polônia, onde as mulheres não são subjugadas e podem tomar decisões tanto quanto os homens, onde a maternidade é valorizada e apoiada, e aprendi que nossa luta, infelizmente, sempre será contínua, especialmente no Brasil. Toda essa experiência aqui me fez lutar cada vez mais pelo nosso espaço e fiquei feliz em ler teu relato e saber que compartilho desse sentimento com outras mulheres e que teremos mais e mais mulheres independentes no futuro, como tuas filhas certamente serão. Abraço!