Os últimos fatos relacionados a nova política de tolerância zero das leis de imigração americana, que separaram milhares de crianças pequenas de seus pais, me fizeram criar coragem para tocar em feridas e mostrar o descaso em relação à infância, que noto aqui nos EUA.
Não vou me alongar nessa discussão específica sobre imigração, mas sim pegar como gancho a tocante fotografia que percorreu o mundo, da pequena menina de casaco vermelho, aos prantos, sendo separada de sua mãe.
As reações foram imediatas e todas as mídias sociais americanas foram tomadas por posts de comoção e indignação, que diziam: Não é assim que se tratam crianças na América!
Ouso dizer que um olhar aprofundado sobre a infância norte-americana, mostra que essa afirmação é equivocada! Americanos não se tornaram insensíveis ao sofrimento infantil depois da posse do novo presidente, ou por consequência de sua política cruel de imigração. Americanos já carregam um histórico de descaso, em relação a suas crianças há muitos e muitos anos.
Já escrevi anteriormente sobre diferenças na infância entre o Brasil e EUA. Quero agora rever esse texto, sob outra perspectiva: de como políticas equivocadas afetam, sobretudo, as crianças de baixa renda no país.
Acompanhem meu raciocínio em três quesitos básicos: alimentação, saúde e segurança.
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Alimentação
Muitos textos aqui no BPM já desmistificaram a ideia de que nos EUA só se come “fast food” e porcarias. Porém, para alimentar-se adequadamente, é preciso dinheiro – e muito! Infelizmente, uma imensa parte da população do país mais rico do mundo, não tem acesso à uma alimentação balanceada e nutritiva. Muitas crianças têm como a principal refeição do dia – às vezes única – a merenda servida nas escolas públicas, e essa é longe de ser saudável. O cardápio escolar varia entre pizzas, nachos, macarrão e hambúrgueres, todos saturados em óleos e corantes, além de sucos artificiais com grande dosagem de açúcar. A opção de frutas e vegetais é pequena e não existe nenhum tipo de alimento orgânico disponível.
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Mesmo as famílias com melhor poder aquisitivo, são ávidas consumidoras de alimentos ultra processados, de baixo teor nutritivo e imensa quantidade calórica. Em restaurantes, normalmente o menu infantil se resume a pratos como Mac and Cheese (macarrão e queijo), nuggets de frangos e muita batata frita. A consequência, como sabemos, é de uma das populações com maior índice de obesidade do planeta, e grande parte desses problemas começa na infância. Sem contar que componentes alimentícios vetados em grande parte do mundo, aqui são utilizados na indústria de comida infantil, assegurados por lei.
A ex-primeira dama, Michelle Obama, levantou essa bandeira, e por oito anos lutou por melhores qualidades na alimentação infantil, além de defender um estilo de vida mais saudável. Infelizmente, muitas de suas conquistas já foram revogadas pela atual administração.
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Saúde
Não existe sistema de saúde pública dentro dos EUA. Para ter atendimento médico, desde consultas de rotina a tratamentos de doenças graves, é preciso ser assegurado por uma companhia de saúde, ou seja, ter um convênio médico. Os bons convênios são geralmente, concedidos pelos empregadores. Assim cria-se uma trágica roda-vida: desempregados não tem acesso a tratamento médico e isso inclui seus dependentes, ou seja, crianças. Tratamentos fundamentais como saúde bucal, saúde emocional, educação alimentar, etc., não são acessíveis a uma grande parte da população.
Há uma tentativa de se preencher essa lacuna através de instituições não governamentais, que dependem de doações para sobreviver. Mais uma vez, toda essa política está sendo revista pelo novo governo e verbas estão sendo drasticamente cortadas para esse fim. Na minha opinião, a falta de saúde pública e gratuita é um dos maiores crimes contra a infância.
Aqui está o link do site governamental em relação a vacinas infantis. Para consegui-las gratuitamente é preciso percorrer um longo e burocrático caminho, com chances reduzidas de êxito.
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Segurança
Diferente do Brasil, crianças em situação de miséria não são aliciadas pelo tráfico, mesmo que vivam expostas a violência em bairros periféricos e desestruturados. Contudo, a violência que atinge e mata crianças americanas é “democrática” e cria vítimas em todas as classes sociais. Trata-se do facílimo acesso a armas de fogo.
Dados estatísticos mostram que crianças e adolescentes menores de 18 anos são as principais vítimas do fácil acesso a armas de fogo, seja por homicídios intencionais ou por acidentes dentro de ambientes domésticos. Por mais que os números sejam aterrorizantes, poucas medidas foram tomadas para mudar esse quadro. Inclusive as terríveis armas de assassinato em massa, comumente utilizadas em forças armadas, continuam sendo comercializadas legalmente em grande parte do país.
Assim, chego a triste conclusão que as crianças nos EUA não são respeitadas em suas necessidades mais básicas. O conforto de casas, carros, brinquedos, aparatos tecnológicos e escolas bem equipadas, não substitui a falta de alimentação equilibrada, cuidados com a saúde e principalmente a segurança de crescerem em escolas, onde o fantasma de uma chacina por arma de fogo, não está a espreita.
Mas, para não desanimar, noto algumas iniciativas muito interessantes em relação a essas questões, em alguns estados americanos, inclusive Washington, onde vivo.
Recentemente foi aprovada uma lei que aumenta as taxas em bebidas ultra açucaradas e com baixíssimo teor nutritivo (sucos e refrigerantes), nos mesmos moldes de taxação de produtos como tabaco e bebidas alcoólicas.
Na cidade de Seattle (mais uma vez) , crianças matriculadas em escolas púbicas têm acesso a vários tratamentos médicos e psicológicos.
Infelizmente, no quesito de um maior controle de armas de fogo, o país não consegue nenhum avanço, apesar dos números inacreditáveis de vítimas a cada dia, e também da insatisfação crescente da população em relação a isso.
Chego a triste conclusão que a infância por aqui ainda não é prioridade nos debates políticos e sociais, e por mais que se fale a respeito, há um longo caminho a ser percorrido.
Estamos em um momento crucial de nossa humanidade e tenho certeza que a única saída será educarmos e provermos as crianças, ao redor do mundo inteiro, com ferramentas dignas que as façam capazes de escrever um futuro melhor.