Como a Holanda cuida das minhas crianças?
Quando cheguei na Holanda sabia que os sistemas de educação e saúde seriam diferentes de todos os outros que eu já conhecia mas, mesmo assim tive muitas surpresas com o funcionamento, a organização e principalmente com a atenção que o país dá às crianças.
A primeira coisa que fizemos foi a inscrição na Gemeente (administração municipal) para obtenção do Burgerservicenummer (também conhecido como BSN) que é um numero de registro de cidadão.
Na mesma semana minha caixa de correio ficou lotada. A partir do momento em que você se registra, o governo controla sua vida e te envia uma enxurrada de correspondência. Cada filha recebeu pelo menos três cartas diferentes.
A primeira era sobre a escola e veio com um envelope pré-pago para que eu enviasse um formulário comunicando em que escola e série elas estavam matriculadas, além de um contato na escola. O texto, em holandês, ainda explicava que toda criança até 18 anos, por lei, deve estar estudando e o não cumprimento desta regra poderia nos trazer várias consequências. Também havia a opção de enviar a resposta por e-mail ou telefone. Achei melhor telefonar, do que preencher três formulários iguais em holandês, todo mundo por aqui fala inglês e a atendente fez todo o procedimento rapidinho.
Uma outra carta era sobre o sistema de imunização. Esta, graças a Deus, tinha uma versão em inglês. Também vinha com envelope pré-pago e um formulário para ser preenchido e enviado junto com cópia da carteirinha de vacinação e uma tradução para o inglês (tradução comum, sem necessidade de juramentar). Enviei tudo e na semana seguinte recebi a carteira holandesa de vacinação de cada uma delas, já com os históricos atualizados. Além disso, recebemos uns “vale-vacinas” com as vacinas que elas deveriam tomar de acordo com o calendário holandês.
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O sistema é simples: quando chega a hora de seu filho ser vacinado te enviam o “vale” já preenchido com todos os dados da criança e o nome da vacina. O local de vacinação é sempre perto da sua casa, você telefona, marca o horário e no dia vai lá com o vale e um documento da criança. Minha caçula devia tomar duas vacinas, a DPT e a Meningo ACWY e quando entramos na sala encontramos duas moças, cada uma com uma seringa na mão. Elas explicaram que ela receberia duas picadas que seriam dadas, uma em cada braço, exatamente ao mesmo tempo para que ela não sofresse duas vezes. E assim foi: um, dois e já… Um susto só e tudo grátis (não estou de forma alguma desmerecendo o sistema de vacinação brasileiro mas achei incrível um sistema público providenciar duas enfermeiras para a mesma criança).
A terceira carta era do Centrum Jeugd e Gezin de Den Haag (Centro da juventude e família). Também solicitava o envio de um formulário com os dados das meninas e explicava que toda criança e adolescente tem direito a um acompanhamento do governo sobre educação, saúde e bem estar. Pediam inclusive os dados da escola pois existe uma troca de informações entre os médicos do governo e os enfermeiros da escola, sobre o desenvolvimento das crianças. Tanto as crianças/adolescentes quanto os pais podem recorrer ao centro para obter informações, conselhos e ajuda a hora que quiserem. Pouco tempo depois de enviar a resposta, minha filha mais nova recebeu outra carta, desta vez com um chamado para uma consulta.
Em determinadas idades as crianças são examinadas para verificação do desenvolvimento físico e mental e aí, duas coisas me chamaram a atenção. Isto não tem nada a ver com o atendimento médico que ela recebe do huisarts, que é um clínico geral, médico da família , que todo mundo tem que ter. Me pediram para preencher um formulário enorme com todo o histórico dela, desde a gravidez até a fase atual. Questões super detalhadas sobre o seu desenvolvimento, aprendizado, dinâmicas familiares, doenças dela e da família, traumas, etc. Havia inclusive um campo onde me perguntavam se eu gostaria de discutir algum assunto sem a presença da criança para que eles pudessem providenciar isso.
A outra coisa foi que a médica conversou o tempo todo com ela, e não comigo. Perguntou se os pais a tratavam bem, se ela gostava da escola, como era tratada pelo professor e pelos colegas, se ela se considerava uma menina feliz, como era seu dia a dia, como era a relação com as irmãs, se ela tinha alguma duvida sobre seu desenvolvimento e até se ela gostaria de falar com a médica sem mim.
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Aos poucos fui conhecendo também as regras da escola. Basicamente nenhuma criança pode perder aula sem um motivo comprovado (doença sem atestado médico, eventos familiares, emenda de feriado, por exemplo, não são motivos aceitáveis) e se isto acontecer os pais são chamados, junto com um advogado, para explicações e provavelmente terão que pagar multas.
As escolas internacionais têm um pouco mais de liberdade pois não precisam seguir todas as regras do governo, mas a escola das minhas filhas é 50% pública e deve seguir as normas holandesas. Para faltar por motivo de viagem por exemplo, deve ser feita uma solicitação com antecedência explicando detalhadamente o motivo.
Casamentos só são aceitos dependendo do grau de parentesco e dos dias de ausência, e aniversários de familiares não são motivos válidos (mas esse ano, a avó do meu marido faz 100 anos e, depois de pedirem até cópia da carteira de identidade dela, nosso caso foi para avaliação, por se tratar de um aniversário “merecedor de análise”).
Outra coisa que me impressionou foi que segundo a escola, eu seria avisada caso as meninas chegassem atrasadas ou faltassem sem um aviso prévio dos pais. A escola tem mais de 2 mil alunos e confesso que não acreditei que isso realmente fosse acontecer. Até que pude comprovar: recebi uma ligação 15 minutos depois do início das aulas, avisando que minha filha ainda não havia chegado. Na verdade este procedimento não é apenas para controle de faltas. Temos que lembrar que as crianças aqui vão para a escola sozinhas, de bicicleta ou com transporte público. Avisar à mãe que uma criança não chegou é também uma questão de segurança. Se acontecer alguma coisa com elas pelo caminho, não teríamos outra forma de saber.
Bom, é tudo extremamente organizado, as coisas funcionam perfeitamente, mas há também um lado muito diferente e bem difícil para nós que estamos acostumados com outro tipo de serviços. O sistema de atendimento médico especializado ou de emergência, por exemplo, é bem complicado. Já tenho várias experiências, frustrantes, desesperadoras , engraçadas, e até algumas assustadoras.
Por exemplo: meu marido perdeu um pedaço do polegar num acidente na academia, depois de dar entrada no hospital, mandaram ele para casa, com o dedo pela metade, o pedaço decepado num vidrinho e tomando apenas paracetamol. A cirurgia, que não era caso de vida ou morte, nem motivo para acionar um cirurgião de emergência, só aconteceria 4 dias depois! Mas esse é assunto para outro texto. Prometo que conto em outro artigo.