Turismo de massa em Lisboa.
“Em Lisboa, há mais turistas do que pombas”. O panfleto colado nas imediações da Praça São Paulo, no Cais do Sodré, arranca risos revelando com humor ácido a realidade da capital portuguesa: Lisboa está inundada por turistas.
Chegam aos montes, sejam os grandes grupos entalando ruas estreitas com ônibus imensos, ou os menores que adotam os tuk tuks como meio de locomoção no sobe e desce das colinas.
Por isso não se espante se ao cruzar a faixa de pedestres em plena quarta-feira, der de cara com uma moçada ligeiramente bêbada e fantasiada, ombro a ombro com a gente de todo dia no vai e vem do trabalho. Quando acontece comigo, olho as ladeiras, o casario e sinto um forte déjà vu de carnaval de Olinda, mas lembro que são apenas mais turistas, no caso, os que vêm fazer despedida de solteiro por essas bandas.
E desconfie da impressão de ter pego o comboio errado, quando ao entrar no vagão vir-se cercada por legiões escondidas atrás de mapas e vestidas com roupa de trilha e escalada, como se ao invés de Lisboa o destino fosse uma expedição ao Saara do quase vizinho Marrocos. A impressão é falsa. Mais uma vez, são só turistas, e, sim, a parada final é Lisboa. Nessas circunstâncias, trata-se do grupo que costumo chamar de “camuflados”, por terem aderido à certa “tendência utilitária”, digamos assim, muito comum entre os passeantes que optam por trajar modelitos mais apropriados para um safari do que exatamente para andanças urbanas.
Pegar o elétrico, os famosos bondinhos amarelos, durante o seu trajeto de rotina? Esqueça, tamanha a espera para entrar em um deles. Mas aconselho se desejar sentir-se como uma celebridade: pegue o 28 e durante o percurso lembre-se de sorrir e posar para as centenas de fotos que serão disparadas na sua direção. E acredite, quando encontrar gente amontoada em alguma ladeira, não se trata de manifestação ou nada do gênero, eles estão esperando a descida de algum dos funiculares (a versão elevador dos queridos bondinhos). Para pegá-lo?, você me pergunta, não, eu respondo, é só mesmo para tirar ainda mais fotos.
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Veja bem, como já deu para perceber, não estaria exatamente a gabar-me nem a apelar para a inveja alheia ao afirmar que “moro onde os outros tiram férias”. Também não é uma crítica a quem decide viajar fantasiado, seja de Cupido ou Indiana Jones. Acredito na liberdade individual de escolha e adoro uma fantasia, e deixo aqui registrada a minha intenção de ainda transitar em um dos bondinho, mas trata-se de uma reflexão: nunca antes na história da minha vida, morei numa cidade com tantos turistas.
E o que isso implica?
Acostumada com os lugares pouco óbvios que fazem parte do meu repertório de moradia – diria eu que todos eles injustamente merecedores de algumas torcidas de narizes por parte de gente que desdenha sem nunca nem sequer ter posto os pés – morar no agora desejado perímetro Cascais – Lisboa, sob o ponto de vista do turismo, fica entre o cômico e o incômodo.
Como a parte engraçada já escapou um bocadinho, vamos ao que menos agrada.
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Visitar x Morar
Passear por um período limitado de tempo é como levar uma vida editada: escolhemos os bairros centrais, frequentamos os restaurantes recomendados, visitamos as atracões e os tesouros que fazem daquele lugar especial.
Não dá tempo de entender a dinâmica de quem mora, especialmente com a massificação do turismo (mesmo que a gente se considere o mais independente e descolado e sabido dos viajantes, se viajamos, por exemplo, na alta estação, estamos fomentando esse fenômeno) quando as chamadas facilidades de apoio ao visitante estão cada vez mais centralizadas em determinados bairros e, algo que vejo como uma certa perda de identidade local, estereotipadas pela maior parte das capitais europeias.
Também não é evidente que enquanto estamos felizes no nosso direito de passear, atravancamos e inflacionamos o meio do caminho de quem faz esse percurso todo santo dia, na rotina do casa – trabalho/estudo/compras – casa. E que esse amontoado de gente a ser evitado para não se perder tempo com trânsito, filas e os preços mais elevados das áreas turísticas, é sentido de forma intensa em cidades menores.
Estrutura
Em termos de dimensão urbana, Lisboa ocupa a 17a posição entre as maiores cidades da Europa, ficando atrás de outras capitais turísticas, como Paris, Londres, Berlim, Madrid. Embora tamanho nunca tenha sido documento nem prova de beleza, sente-se muito mais o fluxo de gente na pequena Lisboa do que, por exemplo, em sua colega francesa. Por ser menor, naturalmente quem visita vai se acumulando de forma mais evidente nos pontos turísticos que estão instalados em boa parte dos bairros onde ainda (e voltaremos a esse ainda) existe vida corrente.
Sim, para quem mora ou trabalha nesses lugares, é inegável o alvoroço causado. Sempre que penso nisso, lembro das calçadinhas minúsculas de pedra portuguesa, ladeando a subida do Chiado para o Príncipe Real: anda-se na rua porque não abarcam o tanto de ser humano que por lá pisa.
Outra questão é a da mobilidade. A história dos bondinhos ilustra bem o que acontece com o transporte público. Ainda que a demanda continue a atender tanto turistas quanto usuários regulares, existe uma disputa maior por espaço no transporte constantemente cheio. E voltemos aos tuk tuks, objetos de amor e ódio: se são atraentes para os visitantes e locomovem-se com facilidade entre ruelas apertadas, deixam para trás barulho e poluição, alem de causarem trânsito e ocuparem mais vagas de rua do que o desejado pelo restante dos motoristas que terminam sem muitas opções de onde estacionar. O reboliço em torno do assunto é tamanho que tem regulamentação prestes a sair.
Gentrificação turística
Gentrificação é um neologismo derivado do inglês gentrification que designa o movimento de restaurar um bairro habitado por parcela mais pobre da população, aos gostos e necessidades de um público mais abonado, elevando os preços dos imóveis e serviços locais.
Inlucir o “turística” na “gentrificação” significa habilitar imóveis até então pouco valorizados para o aluguel por temporada, especialmente em vizinhanças com apelo turístico. E aqui estamos falando do Airbnb e similares, como contei ao escrever sobre aluguel em Lisboa e Cascais. Com preços proibitivos para a realidade local e a impossibilidade de travarem contratos de arrendamento por um longo período, são muitos os moradores próximos ao centro que precisaram mudar-se, buscando abrigo em bairros mais distantes.
Não fosse só isso, os que ficam reclamam da mudança no estilo de vida. Imagine que o grupo fantasiado de Cupido alugou um apartamento por uma semana no seu prédio. Enquanto você segue a logística do cotidiano, não vamos nos espantar se os nossos amigos de férias passarem madrugadas papeando e ouvindo música alta, num ritmo em nada parecido com o de quem mora.
Fechando o ponto, esse episódio também atinge o comércio local. Seja pelo aumento nos preços dos alugueis ou por ofertas irrecusáveis de venda, vê-se lojas tradicionais há décadas, algumas há séculos estabelecidas naquela vizinhança fechando as portas e abrindo espaço para a instalação de mais uma fast fashion ou fast food. A preocupação com a descaracterização do espaço urbano é tão urgente quanto real que em 2015 foi criado o projeto Lojas com História, com o objetivo de preservar esse patrimônio.
Conclusões
A indústria do turismo em Portugal tornou-se importante fonte de renda, assumindo o protagonismo na recuperação econômica após a crise de 2008. Dessa forma, é inegável a importância da atividade que, apesar dos incômodos, é vista com bons olhos pela maioria dos portugueses, salvo o aumento dos alugueis residencias, motivo de constante protesto.
E já que é assim, enquanto nos esprememos entre os visitantes ocasionais, apelamos para o bom senso, seja o de quem recebe, quanto o de quem visita, passando pelas autoridades e agentes da área para que todos possam desfrutar das belezas do país sem privá-las dos nativos.