Uma crônica do metrô de Nova Iorque.
Desço as escadas da estação Chambers Street, no sul da ilha de Manhattan. O cheiro de urina me saúda e não sei se a água no piso, perto do corrimão, é respingo de chuva ou xixi de alguém. Ou os dois.
Com o verão, o calor intenso e a umidade se unem e organizam um pequeno conchavo contra mim. Começo a suar em bicas. Uma gota marrom escorre no meu rosto e se mistura com o rosa do blush. A maquiagem se desfaz. Olho para baixo, meio sem jeito, e vejo as pizzas de suor que brotaram sob meus sovacos.
Procuro um ventiladorzinho, mas aqui não há nada para se refrescar enquanto se espera o trem. Passo, então, a me mover o mínimo possível para não chamar mais quentura. Pronto, sou uma estátua. E estou fundindo.
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Para quem pensa que estou exagerando, um esclarecimento. Eu venho do Rio de Janeiro, sei o que é calor. Mas nada se compara ao tormento das plataformas do metrô de Nova Iorque no verão.
Enquanto espero, presto atenção aos detalhes daquela que é considerada uma das estações mais feias da cidade. Os ladrilhos brancos imundos não veem um detergente há uns 70 anos. Olho para cima e esparadrapos contornam um cano exposto sobre minha cabeça. Do outro lado, água turva brota das paredes. Tenho a impressão que pode ser do banheiro, mas nem sei se há sanitários nesta estação.
Na plataforma, o cheiro é azedo. A chuva que caiu no dia anterior deixou poças de água suja nos trilhos. Uma família de ratos faz a festa com as migalhas dentro de um saco de Doritos jogado. Mas, como nenhum salgadinho vale uma vida, o trem vem e eles se escondem rapidamente.
Ficar aqui não pode fazer bem à saúde.
As portas do paraíso se abrem e eu entro aliviada. O ar gelado esfria minha cabeça calcinada que não consegue entender por que tanta gente gosta dessa cidade e desse metrô. Aliás, por que a Anitta veio gravar o clipe A Paradinha neste metrô?
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Eu juro que não quero ficar mal humorada. Mas logo no início do caminho, o meu metrô muda o itinerário. Do nada. De repente. Sem avisar. O condutor avisa só quando estamos todos no túnel, sem escapatória. Mas antes de avisar, ficamos apenas parados, em silêncio, por dez minutos.
O auxiliar do condutor comunica que o trem não será mais expresso e que ele vai parar em todas as estações até chegar ao meu destino, no Queens.
Demora tanto que me dá a impressão de que construíram estações novas, só para aumentar o caminho.
Lembro-me que no último fim de semana, um condutor foi agredido de madrugada porque anunciou mudanças no percurso. Três rapazes deram socos, jogaram garrafas em cima dele e tentaram puxá-lo para a plataforma através da janelinha.
Paro de pensar na Anitta, no condutor agredido no fim de semana, respiro fundo e aceito meu destino.
Tento ler um livro. Mas logo outra coisa me chama a atenção. Um mariachi com traje típico mexicano entra no meu vagão e começa a cantar Cielito Lindo. Alguns mexicanos batem palmas e fazem coro. O rapaz canta por dois minutos, passa o chapéu, mas pouca gente ajuda com um dólar.
A essa altura, já não sinto mais calor.
Na estação seguinte, um rapaz aparece com uniforme militar camuflado não oficial, desses que dá para comprar em lojas que vendem artigos militares. Há muitas por aqui, mas isso é uma loucura para falar em outro texto.
Tudo pareceria praticamente normal se o cara fantasiado de milico não tivesse uma televisão ligada pendurada ao pescoço.
Ele não pede dinheiro, não vende nada. Apenas carrega uma TV no peito. Como uma instalação, só que controversa e muito misteriosa.
Tenho vontade de perguntar por que ele se veste assim, mas me intimido. A regra aqui é não tocar em ninguém nem falar muito. Apenas observo. Sou uma mosquinha.
O paramilitar fala sozinho e aumenta e abaixa o volume da televisão em seu peito durante o trajeto. Intrigada, deixo definitivamente o livro de lado. Passa a ser mais interessante o metrô.
Algumas estações depois, o pseudomilico desce. Tudo prossegue aparentemente normal. Mas e os avisos sobre segurança que de vez em quando vêm pelo alto-falante? É impossível não pensar num ataque terrorista aqui dentro. São 472 estações com entradas múltiplas. Quase seis milhões de passageiros circulando todos os dias. Faça a conta. Eu mesma já me vi imaginando quais seriam os corredores e estações mais fáceis para um ataque bem sucedido e como eu faria para sair deles. Tem tudo para dar errado.
Dizem que três mil policiais fazem rondas no subterrâneo. Já vi alguns revistarem mochilas e bolsas. Mas, sinceramente, vejo mais indigentes se escondendo no metrô nos dias frios de inverno do que policiais. A não ser que a maioria esteja à paisana.
Uma senhora com bengala entra. Ninguém oferece o lugar. Aqui não é lei, é apenas uma recomendação, faz se quiser. Grávidas, idosos e pessoas com alguma limitação física devem contar com a boa vontade dos demais, algo raro nesta cidade. Resolvo levantar, mas ela se recusa a sentar. Diz, sem me olhar, que vai descer na próxima estação.
Trinta minutos depois, um grupo de break dance entra no meu vagão com um cachorro de óculos escuros. Com uma caixa de som gigante, usam as barras do vagão para fazer um show. O cachorro é figurante. Não dança, mas é uma simpatia. Passam o chapéu e eu dou um dólar. Mereciam mais, mas é o que tenho na carteira. E eu já tinha ajudado o mariachi do início da viagem. A viagem está ficando cada vez mais cara.
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Na última etapa do trajeto, o metrô fica ainda mais lento. De repente, um cheiro de queimado se alastra pelo vagão. Fico um pouco apavorada e tenho saudade da estação Chambers Street, aquela do começo da história, que tinha um vazamento, família de ratos e cheiro de urina. Lá, pelo menos, tinha para onde fugir.
O condutor avisa que um incêndio nos trilhos, algo muito comum por aqui, fez com que o trem tivesse que parar. O fogo é causado pelo lixo que passageiros jogam na via férrea.
Com muito atraso, chego à minha estação, no Queens. Saio do vagão, subo as escadas e um alarme soa insistentemente perto da saída. Ninguém se abala. Eu levo os dedos ao ouvido e continuo caminhando em meu ritmo natural. Subo as escadas e vou para casa.
*Compilado de uma série de viagens no trajeto entre Jackson Heights e Chambers Street nos últimos seis meses.
4 Comments
Adorei Michelle! Me encanto por ler relatos assim, onde somos apenas espectadores do cotidiano. Andar de transporte público sempre me pareceu o melhor momento pra refletir sobre mil coisas, ou um cenário quase perfeito para entender a natureza humana ou apenas contemplar a feiura de um lugar e descobrir algo naquilo. As vezes até me sinto meio “creepy” porque fico olhando pra cada estranho e imaginando suas histórias, ou o porque estão ali, se estariam felizes ou não haha. Nova York certamente seria um ótimo lugar pra eu exercitar esse meu estranho hobby.
Olá, Isadora! Obrigada pelo seu comentário. 🙂 Sim, esta cidade é perfeita para observar as pessoas! Temos o mesmo hobby, então. Eu também faço como você, imagino mil histórias, ouço conversas… 😉
Um abraço!
Que analise verdadeira. Parabéns!
Obrigada, Jordan! 🙂