Kim Wall e a violência contra a mulher na Escandinávia.
O artigo desse mês é uma reflexão sobre a vulnerabilidade da mulher em todas as partes do mundo, inclusive na região nórdica. Frequentemente, recebo mensagens, perguntas e comentários exaltando as maravilhas escandinavas e os seus avanços em relação aos direitos humanos. Fato é, por mais que a Dinamarca, Suécia e Noruega sejam exemplos quase utópicos, sobre igualdade, proteção e respeito aos direitos humanos, eles não são países perfeitos. E o caso da jornalista sueca Kim Wall e do inventor dinamarquês Peter Madsen, que parecem saídos das mais bizarras e macabras cenas de crimes das famosas series Nordic Noir, estão aí para demonstrar o quão vulneráveis são as mulheres em todo o mundo.
Kim Isabell Frerika Wall, 30 anos. Jornalista sueca, branca e bem-sucedida morreu a bordo do submarino UC3 Natilius de propriedade do dinamarquês Peter Madsen, sobre quem escrevia um artigo. A promotoria dinamarquesa acusa o inventor de homicídio, em contrapartida, o acusado diz ter sido um acidente. Em sua defesa, Peter afirma que Kim bateu com a cabeça na escotilha do submarino e, portanto, sua morte fora um acidente. Contudo, Peter não soube explicar como o corpo de Kim teria, dias depois, aparecido desmembrado, sem cabeça e completamente esfaqueado.
Kim, viajou pela África, Ásia e Caribe, escrevendo para o Guardian, Vice e New York Times sobre a situação nessas regiões, contudo, foi em sua nativa Escandinávia que ela veio a perder a vida. Os detalhes de seu desaparecimento, morte e surgimento do seu corpo remetem à cena de abertura da série sueco-dinamarquesa Broen – A Ponte, em português – em que um corpo aparece cortado ao meio e posicionado minuciosamente sobre a linha imaginária traçada na ponte de Øresund, separando os dois países. Na ficção, os dois países se unem para combater um assassino em série, na vida real, a morte de Kim é um lembrete sobre a segurança, ou melhor a falta dela, um aviso que a misoginia não é um problema específico de país subdesenvolvido, mas universal.
Embora a igualdade de gênero seja um valor fundamental para as nações nórdicas, as taxas de violência contra as mulheres são elevadas, e as taxas de violência doméstica contra as mulheres são muito maiores em relação a outras partes da Europa. A taxa média de prevalência de violência doméstica contra as mulheres na União Europeia é de 22%, mas a média da Dinamarca é de 32%, Finlândia 30% e Suécia de 28%.
Violência contra as mulheres é certamente um abuso contra os direitos humanos em todos os países do mundo, inclusive na Europa. Segundo relatório da FRA – Agência de Direitos Fundamentais da União Europeia -, uma em cada três mulheres reportaram alguma forma de abuso físico ou sexual sofrido desde os 15 anos de idade, 8% dessas mulheres relataram ter sofrido qualquer forma de abuso nos últimos 12 meses.
É uma realidade desconcertante, uma vez que altas taxas violência doméstica contra as mulheres e altos níveis de igualdade de gênero parecem contraditórios. Infelizmente, essas declarações aparentemente opostas são verdadeiras nos países nórdicos.
Uma teoria plausível é que os países nórdicos estejam sofrendo alguma forma de recuo, uma vez que as definições tradicionais da masculinidade e da feminilidade estão sendo redefinidas de forma significativa e que as mulheres nessa região se sentem mais livres para reportarem os abusos sofridos. Entretanto, vários outros fatores influenciam os altos índices de violência contra a mulher, tais como, local de trabalho, redes sociais, região de residência, raça, grau de instrução e etc.
A partir desse paradigma fica a pergunta: Seriam os países nórdicos o céu ou o inferno para as mulheres?
Certamente nenhum e nem outro. Como mulher, pesquisadora em direitos humanos e moradora da região de Øresund, eu afirmo com toda a certeza que as mulheres nesses países possuem melhor qualidade de vida que em boa parte do mundo. Os países nórdicos fazem muito para integrar as mulheres ao mercado de trabalho e possuem políticas públicas de assistência ao cidadão quase utópicos para sua sociedade em geral. O lado ruim, certamente, seria o fato dos Estados promoverem maior proteção à vida pública dessas mulheres, mas negligenciam, de certo modo, a proteção da vida privada. A verdade é que ainda há muito a ser feito para proteger as mulheres e promover a sua posição na sociedade.
Prevenir a violência contra as mulheres é mais do que simplesmente promover a igualdade de gênero ou normalizar a posição da mulher na vida pública, é também desafiar a intolerância à violência contra as mulheres é promover a independência e a tomada de decisões das mulheres em todas as esferas da vida, desafiando os velhos estereótipos e papéis de gêneros, e fortalecendo as relações de respeito e igualdade entre homens e mulheres, desde a primeira infância.
4 Comments
Olá Marcele! Ótimo texto.
Parece que a violencia contra a mulher cresce em todas as partes do mundo. No entanto, eu me pergunto se as mulheres estão denunciando mais atualmente.
Aqui nos Estados Unidos, demos alguns passos para trás com o atual governo. Recentemente a secretária da Educação disse que as universidades devem ter uma postura mais flexível com os acusados de estupro nas universidades. Para apoia-la, um senador daqui do Texas disse que a secretaria está certíssima afinal “essas meninas se oferecem”.
Triste.
Abraços,
Alessandra
Oi, Alessandra.
Fico muito feliz que tenha gostado da leitura.
Infelizmente essa ainda é a nossa realidade, a luta pelo direito das mulheres é constante.
É uma vergonha o que alguns políticos dizem e promovem abertamente sobre as mulheres, a eterna culpabilização da vítima está longe de ter fim.
:/ Uma tristeza sem fim.
Abraços.
Marcele
Stieg Larsson que era sueco escreveu a Trilogia Millenium que relata em forma de ficção a violência conta a mulher e a tendencia de serem endogâmicos.
O autor foi muito perseguido, sofreu retaliações e morreu de causas naturais pouco antes dos 3 livros serem publicados.
Alem dos 3 livros há uma serie sueca abastante fiel aos livros e o filme ” Os homens que não amavam as mulheres “
Henning Mankel é outro autor que usando a ficção mostra de forma menos contundente que Stieg Larssson no suspense “Inspetor Walllander” violência domestica.
O inspetor Wallander é uma personagem fictícia criada por Mankell numa série de romances policiais. Kurt Wallander nasceu em Ystad – uma cidade da Escânia no sul da Suécia.
Em cada livro há mulheres vitimas deste tipo de violência em diversos níveis física , mental e moral .
É muita coincidência 2 autores diferentes descreverem eventos similares.
Na Netflix tem a serie completa fiel aos livros também.
Estou surpresá não havia me dado conta só depois de ler a matéria liguei os fatos.
O Planeta Terra e suas peculiaridades cada povo com as suas.