Estamos no mesmo continente, nosso idioma se mistura e se confunde, nossa gente é de sangue quente (dizem) e ainda assim há muita diferença entre Argentina e Brasil. E sou generalista quando digo Brasil porque muitos brasileiros que conheço aqui, de várias partes do país, dizem o mesmo. A honestidade das próximas linhas é, obviamente, desde meu ponto de vista e de vida.
1 – Se acostume a viver em crise
Não estou falando daquela crise que surge quando os amigos postam foto daquela reunião que você não foi. Falo da crise econômica e social que castiga o país há décadas. Eu pude viver uma mudança de governo e experimentar um pouco as políticas econômicas de cada um e digo, com toda certeza, que passei a admirar mais ainda os argentinos que ao longo dos anos conseguiram planejar qualquer coisa. Nossa frágil economia é totalmente dolarizada, isso significa que se o dólar sobe, é garantido que no outro dia o macarrão, a carne e o leite estarão mais caros. O salário não acompanha a inflação e vamos, cada vez mais, perdendo poder de compra. Assim, somos obrigados a mudar nossos hábitos e gostos porque o dinheiro não alcança. Nossa moeda, de Peso só tem o nome, porque a cada dia está mais desvalorizada, gerando desconfiança nos mercados e nas pessoas. Ninguém guarda Pesos no banco. Para que? Se amanhã vai valer menos? Alguém pode dizer “no Brasil crise também é assim”. Mas o Real é forte, quando alguém vai comprar uma casa, o preço não está em dólares. Aqui até carros e aluguéis já vemos em moeda americana. Fica muito difícil acompanhar.
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2 – Vida Social: o difícil que é ser parte de um grupo
A maioria dos grupos de amigos daqui já se formaram no ensino fundamental. É isso mesmo: as amizades são de vários anos. Claro que com o passar do tempo pessoas chegam e vão, mas tem sempre aquele grupinho original para lembrar como tudo começou e entrar nesse grupo é muito difícil, pois o argentino é bem desconfiado. Mas, uma vez que você tem a amizade de um, dura a vida toda.
Ter um relacionamento também tem suas diferenças: se ele tem o grupinho de amigos vai ser praticamente impossível que deixe de ver os amigos pra ficar com você, porque aqui os amigos vêm primeiro. Normalmente as saídas são cada um pro seu lado e está tudo certo, porque as baladas não são essencialmente para paquerar.
3 – O argentino não vive para trabalhar. Trabalha para viver
Creio que essa foi uma das coisas que mais demorei pra me acostumar no ambiente de trabalho: deu a hora de ir para casa, passa o ponto e tchau, porque é muito importante aproveitar o dia com outras atividades, principalmente no verão com o sol brilhando forte até as 20h. Também já não existe muito aquele sentimento de orgulho em pertencer a uma empresa, como eu vejo no Brasil. Isso porque aqui desconfiam muito dos empresários, principalmente dos grandes e das multinacionais, então vai ser raro ver um argentino bater no peito e dizer, orgulhoso, onde trabalha. Pessoalmente, eu tive e tenho oportunidades aqui que jamais teria no Brasil, e na minha área elas são muito boas se o candidato sempre estiver estudando e se fala outros idiomas.
A lei aqui ajuda bastante o funcionário que estuda que pode ter, por exemplo, 10 dias livres por ano, ou seja, no dia da prova na faculdade as empresas dão o dia livre para estudar. A maioria também tem restaurante e podem ou não oferecer o almoço. Trabalhei numa PyME (Pequena y Mediana Empresa) que tinha uma cozinha completa, onde eu fazia minha comida quando não levava pronta e, uma vez por semana, faziam compra no supermercado de todas as coisas que os funcionários gostavam de comer durante o trabalho. Legal, né? Sobre outros benefícios: todas dão plano de saúde e, se o funcionário não aceitar esse plano, pode transferir para um da sua preferência, mas aí tem que ver qual a porcentagem que a empresa vai pagar. Os sindicatos possuem muita força e sempre estão negociando melhores salários e condições de trabalho. Como isso quase nunca acontece tão facilmente, sempre temos greves, ruas interditadas, panelaços e toda classe de protestos.
4 – É preciso aceitar e entender que o drama faz parte da vida
Reclamar é quase obrigatório. É uma bandeira. Deve ser por isso que existem tantas associações de bairro e tantos grupos sociais. A coisa tá feia? Vamos reclamar. Às vezes penso que fiquei mais chata quando vim morar aqui, mas é normal já que tanta coisa mudou e, de certa forma eu sozinha sou responsável por muito mais do que quando vivia com meus pais. Fiquei mais crítica, talvez mais politicamente correta e cada vez mais adepta de fazer as coisas bem. E dentro desse espírito, já discuti com o motorista de ônibus, colegas de trabalho, na rua, no trânsito e no restaurante. O drama está presente na cultura portenha e não é difícil reconhecer uma atitude exagerada diante de um fato qualquer. Antes eu me perguntava: “é necessário esse escândalo todo?” Hoje reconheço, aceito e entendo que dentro do contexto da vida na Argentina, um pouco de histeria e drama são essenciais e exagerar na importância das pequenas coisas, racionalizar conceitos que quase ninguém dá valor, dá até certa paz de espírito.
5 – Apesar de tudo, a qualidade de vida é alta
No ranking da revista especializada em turismo Condé Nast Traveler, divulgado agora em abril, a Cidade de Buenos Aires ficou no posto 14, entre as 50 cidades mais lindas do mundo. Quem vem de férias nota que a cidade está cheia de atrativos e lugares marcantes e quem vive aqui também sabe que, como o dinheiro não sobra, se é preciso gastar um pouco, que seja para passar um bom momento e aproveitar ao máximo o tempo livre, as praças, parques e as muitas atividades gratuitas oferecidas (feiras, museus, teatros) e que produzem uma atmosfera de bem-estar que vai muito além de coisas materiais, e está ligada totalmente a curtir a vida .
Também, essa é uma opinião pessoal, as pessoas são muito educadas, disciplinadas, politizadas e mais “de família”, e isso é fruto de uma cultura formada a partir de várias culturas, de vários países. De gente que aceita dialogar e conviver com o diferente. Pessoas que estão bem informadas sobre o mundo, mas sabem a hora de dizer “chega!” e se desligar dos problemas, do trabalho, das pressões e focar em melhorar a qualidade de vida que o país oferece.
O argentino tem uma urgência saudável de viver o HOJE, é mais despreocupado com coisas a longo prazo. Pode ser que isso seja um triste reflexo de tantos anos de crises econômicas e caos social, mas é um jeito de viver. Ainda não sei se é o certo, mas até agora tem sido o melhor.