Parei para pensar em como os produtos dos tempos dos nossos avós eram mais resistentes ao perceber a frequência com que trocamos eletrônicos e eletrodomésticos. Não é de hoje que os produtos colocados à venda no mercado de consumo são considerados mais frágeis. Por consequência, o tempo de vida destes produtos reduz consideravelmente, obrigando o consumidor a realizar uma nova aquisição em um curto período de tempo de outro produto com características semelhantes.
Acredito ser contraditório a tecnologia evoluir cada dia mais rápido enquanto que a qualidade da produção cai drasticamente a tal ponto que imponha ao consumidor a compra compulsória, sem permitir que o mesmo opte pelo uso prolongado do bem adquirido.
Acontece que certas estratégias comercias de obsolência programada – termo utilizado quando empresas voluntariamente diminuem a durabilidade de um produto para aumentar as taxas de substituição visando o lucro – levam às consequências sociais e ecológicas insustentáveis a longo prazo.
Ao limitar o uso de mercadorias por um tempo relativamente curto, a liberdade dos cidadãos de consumir de maneira durável e responsável é restrita. Mas como podemos sentir essa restrição no dia-a-dia? As técnicas que tornam mercadorias obsoletas em tempo recorde são as mais variadas.
Certamente seu aparelho celular já parou de funcionar por falha de uma única peça que não tinha disponibilidade para ser reposta no conserto. Naturalmente você se viu obrigado a comprar um novo, correto? Pois é. Essa técnica – conhecida por defeito funcional – é aplicada em produtos elétricos ou eletrônicos como televisores, aparelhos de telefone móvel, máquinas de lavar e computadores.
Todos têm um amigo ou familiar que se orgulha de manter em bom estado de conservação por longos anos o mesmo aparelho celular, sendo inclusive motivo de piadas por sua opção, não é mesmo? Mesmo os consumidores mais zelosos são boicotados pelo mercado, ao serem impedidos de atualizar certo aplicativo por não adotarem os modelos mais recentes encontrados no mercado de consumo, tornando-se alvo da técnica de obsolência programada por incompatibilidade, pois será forçado a comprar um novo aparelho – ainda que não tenha a menor vontade – sob o argumento de utilização de um aparelho incompatível com a tecnologia atual.
Em defesa dos consumidores –seja aquele determinado em desfrutar da sua compra até quando for possível, seja aquele que anseia por adquirir o lançamento, independente do estado de uso do aparelho que já tem em mãos – a legislação francesa inseriu na sociedade a lei da transição energética, por meio da qual empresas que reduzirem o tempo de vida de uma mercadoria voluntariamente ao mesmo tempo que incentivam o consumo de produtos recém lançados serão punidas por terem cometido o delito de obsolência programada.
Sendo a infração constatada, as companhias sentirão o peso da lei na carteira, com a pena de dois anos de prisão cumulada com a multa de 300 mil euros, podendo tal valor ser aumentado para 5% do número de vendas anuais realizadas na França pela empresa infratora.
Somado aos fatores sociais, reflita sobre as consequências para a economia. Percebe-se que as famílias desfavorecidas sofrem dupla pena no sistema atual: além de serem obrigadas a comprar bens de consumo de baixa qualidade, precisam frequentemente substituir os mesmos.
Certos setores econômicos insistem que os menos abastados perderiam o poder de compra com o aumento do tempo de vida dos produtos, porque os produtos que duram menos tempo teriam o custo de produção mais baixo. O argumento não se sustenta. Se assim fosse, a obsolência programada seria antissocial, pois – de acordo com esse posicionamento – os produtos de baixa qualidade seriam destinados unicamente para os desfavorecidos, o que não ocorre na prática. Todos os consumidores, independentemente do nível social, compram com uma frequência maior e perdem o poder de compra a longo prazo nos moldes atuais.
A luta contra a obsolência programada implica numa mudança de modelo econômico. Trata-se de consumir e produzir menos, com melhor qualidade, optando por produtos locais e ecológicos. Se o fim da obsolência programada implica na transformação em termos de emprego, ela cria novas oportunidades em outros setores.
Graças à economia circular, colaborativa, funcional, social e solidária, é possível enxergar novos postos de trabalho nas áreas de reparação, de serviços, de desenvolvimento de tecnologias a serem aplicadas em produtos mais duráveis, no melhor aproveitamento de produtos agrícolas oriundos da produção rural regional e de inúmeras outras possibilidades.
Trata-se paralelamente de se engajar numa reflexão global sobre o modo de vida, a troca de bens e serviços em comunidade, o design, o trabalho e, principalmente, a simplicidade voluntária.
Posso assegurar que essa revolução pode ser vista no cotidiano francês, ainda que sutilmente. Ao participar ativamente de uma pequena associação de bairro em Toulouse, fui apresentada à moeda local – sol violette – que é prontamente aceita em estabelecimentos comerciais que apoiam os produtores locais, com a finalidade de estimular o desenvolvimento da economia regional.
O euro pode ser trocado em agências bancárias pelo sol violette, com a vantagem de receber um bônus de poder de compra de 5% a cada 20 euros. Ou seja, se você troca 20 euros, recebe 21 sols. Se você troca 40 euros, você recebe 42 sols. E assim por diante.
Projetos paralelos são criados a partir da moeda local, impulsionando a formação e o emprego de pessoas na confecção de carteiras sol – vendidas em estabelecimentos comerciais e eventos, bem como na criação de empregos em empresas de reciclagem e revalorização de resíduos, confirmando a essência da criação uma moeda complementar e solidária – de preservação do meio ambiente.
Confesso que antes de entender como funciona o sistema, fiquei confusa. Contudo, após assimilar o que me foi gentilmente oferecido por amigos franceses, repensei meu modo de vida.
Obviamente que não basta a introdução de uma legislação na sociedade para que suas estruturas sejam abaladas. A aplicação ainda precisa ser definida, sob pena do conceito – altamente vago – perder a credibilidade num mercado de consumo que estimula o consumismo exacerbado. De nada vale uma lei sem o comprometimento da sociedade como um todo para modificar nosso modo de consumo e produção para as gerações presentes e futuras.
2 Comments
Ola Carolina, gostei muito do enfoque que voce deu a absolencia programada. Nao resta duvida que a oferta e a demanda se tornaram irracionais. A estrutura macroeconomica global oculta fatores importantes que nao nos permitem compreender relevantes interacoes, dentre elas as regras que regulamentam o mercado de trabalho. Voce deu um fecho na questao muito importante. “De nada vale uma lei sem o comprometimento da sociedade como um todo para modificar nosso modo de consumo e produção para as gerações presentes e futuras”
Olá, Juraci! Em primeiro lugar, agradeço sinceramente pela leitura do artigo e pelo comentário! De fato, o mercado oculta dos principais interessados sobre o seu real funcionamento. Isso certamente dificulta que os consumidores tenham uma consciência plena, tornando-se vulnerável aos desmandos de empresas com foco tão somente no lucro. Acredito que legislações como a mencionada no artigo sejam apenas o começo de uma mudança de comportamento. Cabe a todos reagirem a fim de boicotar essas práticas ilícitas. Abraços!