Dois homens armados com facas invadiram uma igreja de Saint-Étienne-du-Rouvray, na região da Normandia, no norte da França, durante a missa matinal, matando o padre Jacques Hamel, de 85 anos. Três reféns ficaram feridos. A polícia matou os dois terroristas. Um deles já estava, inclusive, sendo vigiado pelo governo francês e já tinha sido preso provisoriamente pela acusação de associação para o crime ao tentar partir para a Síria, e foi liberado com uma pulseira eletrônica. O Estado Islâmico, mais uma vez, reivindicou a autoria do atentado.
A ameaça de um atentado contra um local de culto cristão não foi uma surpresa. Em meados de 2015 um plano de ataque contra uma igreja católica nos arredores de Paris foi abortado. Ocorre que é inviável manter a segurança em todos os templos cristãos. As medidas de segurança aplicadas a possíveis focos terroristas não conseguem ser tão amplas, sob pena de inviabilizar o plano de segurança nacional.
É inegável que a imagem dos muçulmanos foi arranhada com a sequência de ataques em nome do Islã. Uma recente pesquisa realizada na França revelou que, para 40% dos franceses, a presença de uma comunidade muçulmana em território francês é uma ameaça para a identidade do país, considerando o fato de que procuram implantar seu estilo de vida em vez de se adaptar à cultura local. Com uma religiosidade que varia de acordo com a origem, as gerações e mesmo com o nível social e uma comunidade heterogênea, bem distante do bloco homogêneo vislumbrado por alguns, a ruptura da comunidade muçulmana é particularmente visível.
Na verdade, não existe uma comunidade muçulmana propriamente dita. Ela é composta por uma diversidade religiosa, ideológica, étnica, política e social. Definir uma mesquita como de origem algeriana, marroquina ou turca é algo admitido pelos próprios muçulmanos. Não é raro que os fiéis optem por locais de culto em função das ligações culturais com o responsável da mesquita ou mesmo com o líder, conhecido como imam. Em outras palavras, o islã da França está nas mãos de pessoas que não dominam o contexto sócio-cultural francês.
Diante dessa realidade, é urgente que os muçulmanos locais desenvolvam um olhar francês sobre o islamismo. No lugar da cultura francesa influenciar os recém-chegados, o que tem acontecido é a cultura árabe invadir terrenos predominantemente franceses, como nas roupas e nomenclatura de mesquitas.
Um fato relevante – e preocupante – nesse contexto é o crescimento de partidos políticos extremistas, os quais defendem políticas voltadas exclusivamente para os nacionais, sob o pretexto de que os males atuais são oriundos das migrações, sendo que os expatriados seriam, em tese, os únicos responsáveis pelas vítimas de ataques de pequeno e grande porte.
Por muitos anos, minha única referência sobre a religião islâmica foi a versão da mídia nacional ou estrangeira. Imaginem o temor que senti ao saber que o bairro onde morei por cerca de um mês em Toulouse – mudei de endereço em pouco tempo por outras razões – era a região conhecida pela concentração de islâmicos. Apesar de vê-los com frequência, não foi nesta oportunidade que pude conhecê-los verdadeiramente.
Apenas quando comecei a estudar francês numa pequena associação de bairro foi que passei a conviver de perto com eles. O que mais me chamava a atenção era a dedicação aos estudos. Poucas vezes vi estrangeiros aprenderem tão rápido a língua francesa. Em um ano, a fluência deles era impressionante. Enquanto presenciava a enorme dificuldade das pessoas em aprender uma nova língua, a facilidade com que eles evoluíam no aprendizado saltava aos meus olhos.
E não pensem que era porque não tinham outras coisas para fazer. Pelo contrário. Convivia com mulheres que cuidavam do marido e dos filhos em tempo integral e ainda assim se destacavam pela sua inteligência e foco. Ao descreverem suas rotinas, tinham um sorriso doce e uma alegria que resplandecia na alma. Difícil acreditar que pessoas tão centradas e tranquilas possam ser responsabilizadas por atentados tão cruéis. A cada novo ataque, o preconceito contra muçulmanos só faz aumentar.
O Conselho Francês de Culto Muçulmano convidou os responsáveis das mesquitas, os imams e os fiéis a comparecer a uma missa para exprimir sua solidariedade e sua compaixão. Cerca de 2 mil católicos acolheram centenas de muçulmanos. Em clima de união e solidariedade, os fiéis oraram juntos e cantaram louvores, antes de se cumprimentarem e se abraçarem – pela paz e pela memória do padre Jacques Hamel. Momentos assim fazem a esperança de um futuro melhor brotar em nossos corações.
Atitudes louváveis como essa demonstram que religiões diferentes podem viver em harmonia, sem necessidade de combater os ideais alheios para impor suas crenças. As mortes e as violências em nome de Deus – em hipótese alguma – podem ser admitidas. Acredito que vertentes mais radicais usam o nome de Deus em vão, causando, por consequência, uma enorme confusão em leigos que não sabem diferenciar o verdadeiro Islã daquele apresentado pela mídia em larga escala. Antes de julgar uma comunidade com base unicamente na opinião de terceiros, reflita. Nem sempre a primeira impressão é a que fica.