A Lei de Jante na Dinamarca.
Inicio este post com um desabafo: tenho pavor de gente deslumbrada, de pessoas que acham que tudo no Brasil é ruim e que os países do hemisfério norte são verdadeiros paraísos inatacáveis e irretocáveis, e por isso mesmo me esforço em desmistificar essa glorificação descabida que, combinada com o maior problema de saúde pública do Brasil – a síndrome de vira-lata – transforma cidadãos de bem em criaturas cegas e delirantes, que creem que o preço do Playstation é critério válido de desenvolvimento e bem-estar populacional.
Contudo, creio que este problema seja resultado da falta de informação acerca do dia a dia em diferentes sociedades, e é aqui que reside o mérito deste site, pois o Brasileiras Pelo Mundo traz relatos e opiniões de mulheres que vivem e experienciam outras realidades de forma plena e que, através de seus posts, nos mostram não só o lado cartão-postal dos países nos quais vivem, mas também as dificuldades e os problemas inerentes a qualquer organização social, sem idealizações ou deslumbres.
Em posts passados, mencionei algumas questões delicadas da sociedade dinamarquesa, como a existência alarmante de casos de racismo sistêmico e institucionalizado e a pouca vontade dos órgãos judiciais para combatê-lo. Entretanto, a Dinamarca possui também muitas virtudes; há aspectos desta sociedade que me fazem sentir orgulho de viver aqui e dos quais sinto falta quando ocasionalmente regresso ao seio da pátria amada, idolatrada, salve salve. No post de hoje, falarei sobre o que eu mais gosto da Dinamarca (depois da torta de morango e das cervejas): a concepção de que ninguém é melhor do que ninguém, essência da Lei de Jante, um conjunto de práticas e comportamentos profundamente enraizados na mentalidade dinamarquesa.
Explicar a Lei de Jante não é fácil, até mesmo porque seu sentido mudou através dos tempos, mas a expressão surgiu no livro “Um Fugitivo Cruza o seu Trilho”, de 1933, do escritor dinamarquês Aksel Sandemose. Em seu livro, Sandemose descreve uma cidade fictícia, Jante, inspirada na cidade natal do autor, cuja sociedade é regida por uma série de mandamentos, conhecidos como a Lei de Jante:
- Não pensarás que és especial.
- Não pensarás que és tanto quanto nós.
- Não pensarás que és mais esperto que nós.
- Não acreditarás que és melhor que nós.
- Não pensarás que sabes mais que nós.
- Não pensarás que és mais importante que nós.
- Não pensarás que és bom em alguma coisa.
- Não rirás de nós.
- Não pensarás que alguém importa-se contigo.
- Não pensarás que podes nos ensinar algo.
Em sua concepção original, a Lei de Jante é descrita por Sandemose como uma “pressão de natureza mortal” que se aplacava sobre os trabalhadores da cidade, um mecanismo de conservação da uniformidade social, cujos transgressores eram hostilizados e socialmente ostracizados. Em muitas passagens, o autor criticava também as profundas diferenças entre classes sociais entre os filhos dos trabalhadores e os filhos dos aristocratas, razão pela qual não é simples atribuir um só sentido à Lei de Jante. Entretanto, com o passar do tempo, a expressão Lei de Jante passou a se referir ao conjunto de “mandamentos sociais” escandinavos que ditam, entre outras coisas, que ninguém é melhor do que ninguém e que todos são iguais, uma concepção que permeia toda a sociedade dinamarquesa.
Dinamarqueses, de maneira geral, acham patético o nosso apego a títulos e méritos, pois aqui, em uma sociedade amplamente igualitária, um médico e um marceneiro ganharão, ao longo de sua vida profissional, valores não tão distintos; por isso mesmo os serviços são caros aqui, pois eles são prestados, em regra, por pessoas que são vistas como iguais e que, portanto, merecem uma remuneração razoável. Fazer as unhas da mão aqui sai, em média, de 100 a 150 reais, e contratar alguém para fazer aquela faxina básica em sua casa uma vez por semana não sai menos de 100 reais por hora. E eu acho que isto está certo! Acho que as pessoas devem ser bem remuneradas pelo seu trabalho, seja ele qual for, e que devem ter acesso às mesmas condições de vida, na medida do possível. O resultado é uma sociedade majoritariamente igualitária, segura e baseada no respeito ao outro. Dinamarqueses não deixam a privada suja para a faxineira limpar, meus caros, e a ex-Primeira Ministra foi fotografada várias vezes realizando tarefas que nós, brasileiros, estamos acostumados a pagar para que alguém faça, como limpar o quintal.
Leia sobre motivos para não morar na Dinamarca
Em uma sociedade na qual ninguém é melhor do que ninguém, políticos perdem seus cargos por pressão pública quando viajam de primeira classe. Afinal, quem eles pensam que são para gastar o dinheiro público com um luxo desnecessário? Aqui, muitos de meus colegas de trabalho, com décadas de carreira e salários consideráveis, dirigem carros modestos e antigos, pois carros são apenas um meio de transporte e não um instrumento de validação social. Muitos deles, aliás, nem têm carros – usam apenas suas bicicletas e o transporte público. Meu chefe não tem sala especial e sim, uma mesa igual à minha. Minhas colegas de trabalho não se sentem pressionadas a investir recursos em roupas de marca para se sentirem especiais, e repetir a roupa durante a semana é mais que regra.
Ninguém aqui diz que é filho de fulano, parente de sicrano ou amigo de político para se gabar. Ter um filho estudando Direito ou estudando para trabalhar como assistente em uma creche é a mesma coisa, com a diferença de que o último terá a vantagem de ingressar no mercado de trabalho mais cedo. Mencionar que você passou em primeiro lugar no vestibular fará um dinamarquês sentir fastio, e falar em qualquer tipo de privilégio distintivo ou posse supérflua os fará rir e ter pena dessa necessidade de afirmação primitiva. Jóias extravagantes, roupas caras, bolsas com logotipos, carrões e idas à Miami para fazer compras são objeto de piada aqui.
Claro, a Lei de Jante funciona magnificamente bem para os dinamarqueses, especialmente os dinamarqueses étnicos, e seria muita inocência imaginar que todos os dinamarqueses olham para os refugiados sírios, para as babás filipinas ou para os pedreiros nigerianos como iguais. Além disso, este louvor à igualdade por vezes torna os dinamarqueses intolerantes com relação às diferenças inerentes à nossa humanidade, e o sistema educacional, por exemplo, tem dificuldades em lidar com quem é etnica ou culturalmente diferente. Entretanto, ainda há muito o que se admirar nesta sociedade e em seus princípios, e espero que algum dia ela evolua ao ponto de abraçar esta concepção igualitária em seu todo – e não só os dinamarqueses.
14 Comments
Camila, muito bonita essa atitude dinamarquesa, eu sonho com o dia que isso se torne mundial, a visão de igualdade não por nacionalidade e sim por todos sermos seres humanos, o quê posso fazer como pessoa é começar por mim, ver o outro como igual, ao faxineiro, encanador, enfim. Muito bonita a sua atitude em valorizar o Brasil, pois muitas pessoas realmente só olham o lado ruim de nosso país, claro que ele não é perfeito, mas tem muitas qualidades. Um abraço.
Olá Katia 🙂 Muito obrigada pelo ser comentário 🙂
Posso ver que compartilhamos o mesmo sonho e, como você salientou, isso começa com pequenas atitudes, valorizando, remunerando bem e tratando com respeito todos os profissionais. E também espero que as pessoas vejam que o Brasil é um país com tanta coisa boa – e por vezes melhor – do que aqui. Semana passada estive no hospital por conta de uma infecção intestinal combinada com gripe e infecção de garganta, e o tratamento médico aqui foi péssimo, muuuuuuito inferior ao tratamento prestado pelo SUS, na minha experiência. Gostei muito da sua contribuição 🙂 Abraços!
Olá Camila
Excelente texto com um olhar lúcido sobre o assunto. Eu percebo o mesmo aqui na Holanda , esse respeito á igualdade mais delimitado aos holandeses étnicos. Eu definiria mais ou menos assim “são todos iguais, mas uns são mais iguais que outros”. Mas, como você ( no que diz respeito aos dinamarqueses) também vejo muita coisa positiva no modo de interagir dos holandeses. Abs
Oi Cintia, tudo bem?
Agradeço muito pelo elogio 🙂 Como você disse, é importante ter consciência de que essa igualdade não é tão igual assim 🙂 Contudo, acho que existem coisas a se admirar em sociedades como a holandesa e a dinamarquesa, e espero que um dia esses aspectos positivos deixem de ser limitados por preconceitos. Abraços 🙂
Fica mais fácil tentar extrapolar a visão dinamarquesa de igualdade para fora de sua etnia, do que tentar implementar quase que do zero a concepção de igualdade em uma sociedade com ranço escravocrata como a brasileira. Por aqui, é totalmente aceitável, e até incentivado, a criação de diferenças. Não é aceito de forma alguma um médico ganhar pouco mais que um pedreiro, ou uma advogada se equiparar a uma cabeleireira. De forma alguma, tais pensamentos e quem os advoga são anatematizados de pronto.
Olá Francisco 🙂
Obrigada pelo comentário, muito pertinente e lúcido. Infelizmente, tais estruturas de poder se perpetuam no Brasil, ancoradas na necessidade primitiva de ser mais que alguém. Lembro-me que não pude deixar de rir (e quase chorar) ao ler Formação do Brasil Contemporâneo – Colônia, do Caio Prado Jr., e os relatos de que até o mais humilde sapateiro de tez clara tinha um escravo para carregar sua caixa de ferramentas.
UAU. Que texto maravilhoso.
Muito obrigada, Daniel!!!!
Camile eu vejo a lei de Jante de maneira mais realista. Ou seja, eu acho muito legal essa coisa de igualdade, mas o que vejo tambem, é que a lei de Jante tem tb muita relação com a inveja. Num grupo de escola por exemplo, se vc como um estrangeiro souber mais do que eles, eles morrem de ódio. Se vc por merecimento tirar uma nota melhor do que a deles tb. E fazem o possivel pra derrubar vc.Tenho muitas obs.pra acrescentar aqui, mas deixa pra lá.
Oi Rosi, tudo bem?
Concordo com você, pois foi exatamente isso que ouvi no depoimento de muitas mães estrangeiras cujos filhos foram vítimas de racismo aqui, e foi isso que eu quis dizer quando me referi às dificuldades que o sistema educacional tem de lidar com o que é diferente. Você e seus filhos também passaram por isso? Beijos
Oi Camila, parabéns com seu texto, a pesar de que provavelmente estou pensando um pouco diferente em várias questões, mas isto também é o caso com muitos dos meus compatriotas (eu sou dinamarquês). Pra mim o pior preconceito é quando dinamarquês pensa que todos estrangeiros são gente ruim… ou gente boa! Especialmente se seja dinamarquês que não entende bem e nem quiser fazer um pequeno trabalho pra se informar um pouquinho melhor. Como nos (os dinamarqueses), os estrangeiros têm sua língua, seu nível de formação, sua história pessoal, seu estado de saúde, sua convicção das causas e efeitos da realidade, sua convicção de valores, etc. Então, mesmo que somos iguais, não somos iguais. Existe uma diferença real que pode criar problemas. E acho bom que aqui na Dinamarca somos muitos que tentamos falar de este aspecto, no lugar de censurar uma discussão, que esperançosamente possa resolver alguns dos problemas. Assim que nós, os dinamarqueses podemos melhorar, mas também alguns dos estrangeiros. Existem dinamarqueses aqui que tem poder, e que querem que recebemos estrangeiros aqui de todo o mundo com direitos pra casa (/lar/alojamento) e trabalho ou ajuda aqui ao mesmo nível como os dinamarqueses. Pessoalmente concordo com a última parte: Se vc migrar aqui, vc deve ter direito pra ajuda ao mesmo nível como nos, porque quero a regra seja “na Dinamarca somos todos iguais”; mas não concordo com que podemos receber uma quantidade ilimitado ou sem deveres ou condições pra o estrangeiro quem quer ser parte da nossa “associação”. Eu não sou perfeito aos valores típicos de Dinamarca, mas pelo geral, temos bastante inclinação de ser democráticos, não bater nas mulheres, não falar pra os nossos filhos com quem têm que namorar ou se casar ou com quem não podem ser amigos baseado em seu origem étnico ou sua fé religiosa, chegar ao tempo, honrar acordos – também se fizemos um erro ao assinar um contrato, não ser corrupto, etc. Fazemos questão de não tolerar comportamentos demais desviantes, especialmente em quanto a corrupção que é uma questão muito fundamental pra nós: o base de boa gestão e uma sociedade competitivo e justo que cuida e ajuda os cidadãos que o precisam. E pra a grande maioria dos estrangeiros, isto não é um problema.
Chega, já falei demais. Desculpa que existem alguns dinamarqueses que são um pouco estúpidos ou fazem erros em lidar com estrangeiros (eu também posso ser parte deste grupo algumas vezes mas tento progredir). Espero que tenha uma vida maravilhosa aqui na Dinamarca. 🙂
Nossa que texto incrível camila! Tudo que sonho para o Brasil, que ele possa ter uma igualdade social. Amei saber sobre o livro citado e já vou procurar p ontem. Parabéns pela sabedoria compartilhada. Não conhecia o blog e estou amando todos os textos dessas brasileiras que mostram que não somos só bunda! Muitos beijos
Camila adorei, muito bom eu ja conhecia um pouco sobre a Lei mas voce ajudou me a entender melhor. Beijoa e sucesso sempre.
Não pensarás que alguém importa-se contigo.