Devo começar esse texto dizendo que todas as criticas que faço a sociedade chinesa não representam, nem sequer, uma gota de ódio pela mesma. Admiro a China e os que aqui vivem por muitos motivos e os questiono por outros muitos.
Acho que todo imigrante ou visitante quando adentra um país novo, se calibra de opiniões e visões de vida e é aí que mora o que move muitos a saírem de suas terras, seja pra trabalhar, estudar ou tentar uma chance: a vontade de ver o que tem “lá fora”.
Desde que comecei a organizar em textos minhas visões sobre a China, faço questão de agradecer todos os dias pelas imensidões que ela me proporciona. A China é um lugar funcional, de muitas oportunidades e muitos avanços.
Se no Brasil costumamos dizer que “nada funciona”, por aqui se experimenta o oposto. As regras sociais vão bem, os serviços públicos também e a lei mais ainda. Não há impunidade na China. No que diz respeito a estrutura, a China esbalda qualquer país, porém hoje a minha critica se volta para o outro lado da moeda.
Comecemos pelo começo. É difícil assimilar alguns extremos da conduta social chinesa quando não se tem um pouco de contextualização. Eu não sei exatamente a raiz de tudo isso, mas o fato é que a China ainda é um país muito machista.
Vi uma vez, em um ano e meio de vivência, uma moça chinesa da minha idade questionar as regras por aqui. Acontece que a mulher chinesa solteira e sem planos de juntar as escovas de dente e ser chamada de mamãe, é considerada uma vergonha. Com 25 anos, se o bebê não estiver a caminho, você já está passando da hora.
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A pressão pela “família Doriana” por aqui é ultrajante e escraviza. Acredito que as mulheres nem saibam que poderiam seguir outro rumo. É inconcebível e talvez nem sequer passe pela cabeça delas. É algo inexistente pois elas são, desde o nascimento, programadas para isso; para o rumo austero e inquestionável do casamento e da maternidade.
Num ciclo de gerações questionável, a mulher chinesa nunca teve uma amiga que dissesse o contrário ou uma família que a incentivasse a ser o que ela quisesse. A regra é clara: casamento e gestação, sem mais. Isso, obviamente, se ela quiser ser bem vista pela sociedade e, consequentemente, um orgulho para os pais.
Agora com o contexto exposto acima, tente me responder a seguinte questão: o que o bebê representa na vida do casal chinês? Realização? Missão cumprida? Sucesso?
Eu diria que sucesso é o que mais se encaixa dentro da realidade feminina e social como um todo na China. A minha definição de sucesso é diferente da sua, que é diferente da definição da vizinha, que é diferente da do padeiro. Mas é da China que estamos falando e aqui sucesso é uma coisa e apenas uma: aquilo que se mostra.
Sendo assim, imaginemos agora que uma mulher tem toda sua imagem como pessoa projetada em um bebê, desejado ou não. Agora imagine que esse bebê nasce com Síndrome de Down, ou autismo, ou com lábio leporino, com os bracinhos voltados para dentro, sem uma orelha… E agora? Para onde vai o tão falado e imposto sucesso da figura materna?
É por isso, exatamente por isso, que no país mais populoso do globo não se veem crianças com necessidades especiais na rua.
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Esse mês completo 18 meses de China e vi, pela primeira vez, uma garotinha com Síndrome de Down pegando o metrô com a mãe.
As crianças com deficiência na China são tratadas como se representasse o oposto do tão almejado sucesso. Elas existem sim, mas estão em casa, escondidas do mundo e, muitas vezes, negligenciadas pelos pais, que se negam a desfilar com elas por aí. Uma criança que não nasce perfeita para ser o “reizinho” ou a “rainhazinha” da casa não é algo que os pais vão querer mostrar em suas contas no WeChat ou que os avós vão comemorar o nascimento.
Recentemente, encontrei um trabalho voluntário com crianças em Shanghai. Achei muito estranho, ao longo do período que estive aqui, a ausência de ONGs ou casas para menores, afinal, é da maior população do mundo que estamos falando. Só depois de começar a antropologicamente (tentar) entender a sociedade chinesa que me dei conta do motivo dessa ausência. Ninguém quer mostrar essas crianças ou levantar a bandeira delas para o mundo. Elas devem ficar em silêncio e são uma parcela irrisória.
Vindo de um país onde as empresas abraçam causas de inclusão e existe uma grande possibilidade do seu atendente ser portador de alguma necessidade especial, a realidade fria da China me choca e me machuca.
No centro Happy Care**, são 25 crianças que formam uma família. Surdas, com membro debilitados, algumas tem tumores expostos e faces com deformidades. O centro é a casa delas, que foram retirados de orfanatos governamentais por um casal de americanos que defende a causa com muito amor. Lá recebem estímulos, aulas e o mais importante: amor e atenção.
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Diferentemente dos hospitais, o Happy Care tem um cuidador para cada criança, um espaço colorido, inclusivo, sensorial e paciente. Os quartinhos são separados por idade, os pequenos dormem juntos e são acompanhados em suas rotinas médicas pelas cuidadoras. Lá, são vistos como seres humanos e tratados simplesmente como crianças.
Reparei que no mural de entrada há o nome de todos os que contribuem para que o centro funcione. Muitos nomes e empresas chinesas estão pendurados lá. Me deu certa esperança de saber que os locais estão envolvidos na causa e acreditam nela. Me questiono como eles, colaboradores chineses, reagiriam caso uma daquelas crianças fosse sangue de seu sangue. Prefiro não pensar muito e me apegar ao fato de que, no meio de tanta negligência e frieza, há um cantinho repleto de calor.
** o nome do centro foi alterado em prol da causa.
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Inclusive os mais abastados já cometem aborto assim que sabem que o bebê terá alguma ma formação ou síndrome genética. Não se pode saber o sexo do bebê no ultrassom, mas com suborno se pode. Isso não é exclusividade da China, muitos países de primeiro mundo “erradicaram” Down com abortos seletivos. Muito triste. Aqui a taxa de abortos é bem alta, até onde eu sei as chineses não gostam muito de tomar anticoncepcionais. Mas quanto ao casamento, as coisas estão mudando, elas andam casando mais tarde ultimamente e querem se dedicar a carreira. Esta geração criada pelas avós normalmente não sabe cuidar de casa e nem cozinhar.