É inevitável, quando voltamos para casa, que comparemos nosso país com o país onde vivemos antes.
Acredito que haja dois movimentos: um, é o de achar que a grama do vizinho é sempre mais verde que a nossa, e é assim que recebemos, aqui no blog Brasileiras Pelo Mundo, cartas de inúmeras pessoas pedindo ajuda para sair do Brasil, achando que lá fora tudo será melhor. Mas o oposto também é comum e quando estamos fora, por conta da saudade, tendemos a idealizar a nossa pátria: o pão era mais gostoso, lá tem brigadeiro, as pessoas são mais gentis e por aí vai.
Houve uma época em que estávamos muito “reclamões” lá na Ásia. Algumas das coisas que mais nos incomodavam era a falta de cortesia no atendimento, falta de qualidade e super faturamento nos preços de determinados serviços, além da corrupção.
Ao voltar pra casa, pude constatar que Hanoi é aqui, quando falamos de trânsito caótico; que a Indonésia é aqui, quando falamos de corrupção; que Filipinas é aqui, quando falamos de má qualidade e super faturamento de certos serviços. Mas o que nunca achei que fosse dizer é que a Índia fosse aqui, também.
Muitas pessoas romantizam a vida na Índia, hiper espiritualizam e admiram uma cultura que ainda tenho dificuldade em aceitar. Admiro a resiliência, a simplicidade e o desapego do povo, mas tenho muita, muita dificuldade mesmo, em aceitar a maneira como as mulheres vivem naquele país.
Há um ditado que diz que se não tomarmos cuidado, nos transformamos naquilo que criticamos. Pois bem, como uma profecia mal ajambrada, começo a ter a sensação estranha de que a Índia também é aqui.
Recentemente fomos impactados com a notícia de que uma jovem de 16 anos sofreu um estupro coletivo. Como se não bastasse a crueldade por trás desse gesto, eles filmaram tudo e, na certeza da impunidade operante dessa terra, postaram o vídeo na internet.
Isso por si já seria trágico, triste e chocante, e como se não bastasse, a vítima ainda foi transformada por grande parte da sociedade em culpada por sua própria tragédia. Circularam pelas redes sociais diversas mensagens culpabilizando a garota por ter ido à uma hora da manhã para a casa do “ficante”. Culparam-na por ser mãe solteira e rotularam-na como devassa por gostar de sexo com mais de um homem, como se o fato de uma pessoa ter a expressão de sua sexualidade acentuada desse liberdade para quem quer que seja invadir seu corpo.
Sub-celebridades, como o fracassado cantor Lobão, postaram misoginias dizendo que a culpa desse tipo de situação é o fato de o Brasil ser uma fábrica de “microputas”, como se até uma profissional do sexo não tivesse o direito de se relacionar sexualmente apenas com quem o desejar.
O discurso da sociedade brasileira, essa sociedade que se acha tão moderna e liberal, está mais preocupado em educar as mulheres para que sejam boas moças do que preparar os homens para que não sejam estupradores. Em outras palavras, ensinamos as mulheres a temer os homens e não os homens a respeitarem as mulheres. A prova de que isso obviamente não funciona é que a cada onze minutos uma mulher é estuprada no Brasil.
É duro admitir, mas nosso país possui uma cultura de estupro enraizada, e ela é tão forte que, não raro, vemos a vítima transformada em culpada por usar roupa curta, por estar “no lugar errado, na hora errada”, se portando “do jeito errado”. Como Internet é terra de ninguém, encontramos todo tipo de aberração publicada. Mesmo celebridades não sentem nenhum desconforto em falar barbaridades sobre mulheres estupradas. O tweet abaixo foi publicado logo após uma participante do Big Brother ter seu corpo violado enquanto dormia alcoolizada.
No entanto, embora seja possível verificar na Internet muitas mensagens culpabilizando a vítima, felizmente as mulheres se organizaram e passaram a responder à altura. As respostas vieram desde das maneiras mais formais, como a carta aberta da ONU Mulheres no Brasil (leia aqui), até memes e posts respondendo às ofensas dirigidas a nós.
No dia 29 de maio, homens e mulheres foram às ruas em todo o Brasil protestar contra a cultura de estupro. Foi a marcha das flores, que tinha como slogan: “Não foram 30 homens contra uma mulher, foram trinta contra todas.” Foi emocionante!
É muito chocante termos que descer do salto daquilo que achamos que somos e encarar aquilo que de fato somos. Somos um país tão machista, misógino e violento quanto qualquer Índia ou Paquistão. Estamos imersos em sofismas que permitem que a vítima seja violentada mais de uma vez: quando é estuprada e quando pede justiça aos estupradores. Há muitos anos atrás um filme tratou disso com muita propriedade: “Acusados”, com Jodie Foster; me fez chorar durante as duas horas de projeção.
O fato é que precisamos tomar partido nessa luta. O feminismo não mata ninguém, mas o machismo mata todos os dias. Precisamos ser firmes e fraternas, precisamos sensibilizar os homens. Até agora só temos uma indignação seletiva que se refere a “qualidade moral” da vítima em questão.
Não importa o que se diga: a culpa nunca é da vítima!
Uma das melhores campanhas a esse respeito foi realizada justamente por uma organização feminista indiana, um coletivo de humoristas de Mumbai chamado “All India Bakchod” (Os charlatões da Índia), uma espécie de “Porta dos Fundos” de lá, formado por Gursimran Khamba, Tanmay Bhat, Rohan Joshi e Ashish Shakya.
“Sejamos sinceras, meninas, os estupros são culpa nossa. Estudos científicos sugerem que as mulheres que usam saia são a principal causa de estupro. Sabe por quê? Porque homens têm olhos”, declara Kalki Koechlin na abertura do vídeo. Haja sarcasmo e senso de humor para colocar o dedo em uma ferida tão doída, mas elas colocaram.
E nós? Até quando seremos tolerantes com a cultura do estupro?
Que possamos recuperar a humanidade perdida.
Leia sobre estupro:
O baralho erótico – Mia Couto
Meu Corpo Não é Seu: Desvendando a violência contra a mulher – Coletivo Think Olga
A Lista do Nunca – Koethi Zan
Sorte: Um Caso de Estupro – Alice Sebold
Sejamos Todos Feministas – Chimamanda Ngozi Adichie
A Cidade Murada – Ryan Graudin
Vamos Juntas? O guia da sororidade para todas – Babi Souza
Assista filmes que falam de estupro:
Acusados
Meninos Não Choram (Hilary Swank)
Irreversível – Gaspar Noé
Lilya Forever (Para sempre Lilya)
I Spit On Your Grave (Doce Vingança) – 1978 (Steven R. Monroe)
Ensaio sobre a Cegueira – Fernando Meirelles
12 Comments
Excelente artigo! Apenas penso que no nosso país o que temos agora não é nada diferente do que sempre foi, só caíram as máscaras…
Talvez, mas acho que a violência de maneira geral, em especial contra as mulheres, negros e população LGBT está se intensificando por conta do crescimento fundamentalista. Aguarde texto sobre o assunto. Beijos e obrigada por nos visitar!
Parabéns pelo texto Fabi, quando li o título a primeira coisa que me passou pela cabeça foi o livro “Paquistão é aqui” hehe. Obrigado pelas indicações de filmes e livros sobre o assunto. Beijos e sucesso sempre.
Oi querido! Muito obrigada por nos visitar e deixar seu feedback! Não conheço esse livro. Do que se trata? Fiquei curiosa! bjs
Artigo super pertinente, Temos que nos debruçar muiiiiito sobre essa questão e levar essa reflexão para todos, principalmente para as escolas e comunidades. Num país onde temos uma cultura enraizada de violência, onde conteúdos violentos são usados pela mídia para aumentar a audiência, temos que fazer o contraponto mesmo…só a reflexão e manifestação pública levará a quebra da cadeia de violência…insistir nesta pauta para desconstruir essas relações desiguais de poder entre homens e mulheres. Compartilhando já !!! Obrigada Fabi !!! AbraSUS
Obrigada por compartilhar, querida! Você tem razão, temos uma violência enraízada que se concretiza não apenas contra as mulheres, mas também contra outras “minorias”. Precisamos interromper esse círculo de violência através da educação. BJs e obrigada pela visita
Fabi sempre nos presenteando com sua generosidade e conhecimento. O post deixa um nó na garganta, sem dúvidas, e me motiva a continuar na luta pela desconstrução do machismo, do sexismo e do patriarcado. Consigo mesmo imersa a esse momento tenso, projetar e sentir as conquistas de muitos anos de luta. Obrigada pelas indicações e deixo de sugestão um livro que pode ser encontrado em pdf chamado “Sejamos todos feministas” da Chimamanda Adichie, Nigeriana maravilhosa que trata o assunto com uma linguagem simples e maravilhosa!
Querida, graças a uma nova geração de mulheres aguerridas como você, o coração sente-se um pouco mais confortado em saber que o futuro das novas gerações de meninas, poderá ter mais esperança. Obrigada pela visita! bjs
O texto é muito bom e eu sinceramente vivo essa realidade na pele como mãe de homem e mulher. Eduquei meu filho pra que sempre tratasse as mulheres na rua como gostaria que sua mãe fosse tratada, por que muitas vezes até uma cantada se torna ofensiva, um beijo forçado é uma forma de estupro sim, e assim vai. Já a minha filha sou obrigada a implorar que quando sair de casa não use shorts curtos ou blusas decotadas para não chamar atenção de doentes na rus e se for a uma festa e tiver que ir de metro que por favor va acompanhada. No começo ela se revoltava e usava todos os argumentos citados acima, até começar a se sentir violentada cada vez que um homem a comia com olhar ou dizia uma barbaridade para ela e enfim a mudança se fez. Acredito realmente que essa educação tem que vir de casa, a de se respeitar a mulher como um todo. Não somos objeto e não queremos ser tratadas como tal. Beijos linda.
Oi querida, é bem por aí! Temos que preparar a moçada para respeitar as mulheres e rejeitar toda forma de machismo/sexismo.
Obrigada pela visita! bjs
“Não importa o que se diga: a culpa nunca é da vítima!”
Sim! Qual a dificuldade de entender algo tão simples, né?
Tenho dúvida se as pessoas não entendem ou se fingem que não entendem né? Obrigada pela visita! bjs