Precisamos falar sobre a cultura do estupro no Japão.
O Japão sempre foi conhecido pela população extremamente educada (vista por muitos de fora até como fria e distante) mas, vez ou outra torna-se alvo dos noticiários (e também das críticas internacionais) por casos de estupro ou abuso sexual. Recentemente, um protesto contra decisões judiciais absolvendo acusados desses crimes voltou a colocar o país sob os holofotes, chocando muitas pessoas que cultivavam a imagem de país seguro para mulheres. Entretanto, esse debate que não deve acabar tão cedo, é extremamente complexo e precisa ser feito sob a análise de muitos fatores.
A mulher dócil e submissa
A começar pela cultura machista, não muito diferente de outros países, a sociedade japonesa costuma valorizar a imagem da mulher dócil e submissa, dona-de-casa exemplar, mãe abnegada e trabalhadora incansável. E ainda que muitas empresas aleguem que promovem a igualdade salarial e de gênero, o fato é que ainda sentimos o peso da maternidade e de outros aspectos de pertencer ao sexo feminino, como na disputa por vagas ou oportunidades de crescimento profissional e consequentemente financeiro (basta lembrar o escândalo causado pela denúncia contra uma universidade que chegou a manipular resultados de exames para barrar mulheres em detrimento dos candidatos masculinos).
No campo dos relacionamentos, ainda existe uma divisão clara dos papeis atribuídos a cada um dos parceiros, tendo os homens ainda como os principais provedores financeiros e relegando à mulher os cuidados domésticos. Justa ou não (com reclamações de ambos os lados, em que homens também dizem se sentir pressionados pela obrigação de serem os provedores do lar em uma realidade de salários cada vez mais achatados e menor estabilidade no emprego, assim como outros aspectos culturais na dinâmica conjugal), essa divisão perpetua a relação não só de dependência econômica das mulheres, como o exercício do poder pelos homens nos relacionamentos das mais diversas naturezas: amorosos, de trabalho, acadêmicos, etc.
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Pornografia, fetiches e hentai
Falando especificamente do aspecto sexual, a pornografia é reconhecida em todo o mundo como um dos grandes influenciadores do comportamento masculino. Seja porque eles veem nela um dos principais meios de “educação sexual” (com valores completamente deturpados sobre como obter e oferecer prazer, até sobre o próprio corpo e padrões de virilidade), pela dificuldade em falar abertamente sobre esse tema e a facilidade com que a internet propaga essas informações, seja porque ela constroi um ideal de como as relações acontecem em que raramente a mulher é vista como a parceira que merece não só respeito, mas também ter direito ao prazer.
Nesse ponto, a cultura japonesa é conhecida pelos seus desenhos de conteúdo erótico, os hentai, sejam mangás, animes ou jogos, onde a submissão feminina é um fetiche e não é raro a mulher ser reduzida a um corpo a ser dominado. Ativistas femininas denunciam ainda que os casos de assédio sexual envolvendo principalmente meninas em idade escolar nos transportes e espaços públicos, conhecido como chikan, além de ser um problema mais comum do que se imagina, tem afetado vítimas cada vez mais jovens e vulneráveis, bem como um aumento vertiginoso nos casos de pedofilia. É preciso lembrar aqui, que as crianças costumam ir sozinhas para a escola, às vezes acompanhadas de alguns adultos em parte do trajeto ou em grupos, mas não é raro encontrar crianças sozinhas andando pela cidade ou nos transportes como trens e ônibus.
Em um país onde terremotos são frequentes, criar crianças independentes é também uma questão de sobrevivência e a comunidade local, na medida do possível, procura colaborar com a segurança delas inclusive com residências e estabelecimentos conhecidos por exibir o número 110, para que as crianças saibam que podem buscar refúgio naqueles locais, além de comunicação constante entre escola e pais, circulando informativos com instruções de segurança, o uso de alarmes, aulas de defesa pessoal entre outras medidas. Mas nem isso é capaz de evitar a ocorrência de casos entre as crianças.
Ativistas se queixam de que no Japão se ensina (e se cobra) das vítimas como elas devem se comportar e se defender, mas não se faz o mesmo com os homens para que eles parem de abusar e agredir mulheres e crianças. Ademais, a própria divisão dos deveres dentro do relacionamento, ou a relação desigual de poder entre homens e mulheres, reforça muitas vezes a ideia de que o ato sexual em si é uma recompensa e, portanto, um direito dos homens.
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Cultura do estupro no Japão e o silenciamento das vítimas. Não, é não!
No que tange a cultura do estupro, este é um tabu dentro da sociedade japonesa cuja opinião pública muitas vezes se volta contra as vítimas, reforçando a tese legal de que, para ser considerado um estupro este deve ser combatido fisicamente pela vítima, com provas contundentes de sua tentativa de defesa, levando-as muitas vezes ao silenciamento (e consequentemente a subnotificação de casos) e expondo-as a situações humilhantes durante a reconstituição da cena do crime, conduzida na maioria das vezes por policiais homens, fazendo-as reviver o trauma de forma violenta (e, segundo os seus críticos, desnecessária) e muitas vezes culminando com a impunidade do agressor.
Outro aspecto legal importante, que envolve a caracterização do estupro sob esse viés, é que o consentimento da vítima para o ato é colocado em segundo plano, pois ele acaba por desconsiderar que em muitos casos a intimidação ocorre de forma velada, como nas situações em que o agressor claramente detém maior poder, ou até mesmo após a indução de consumo de drogas e álcool incapacitando a vítima de reagir ou se defender, em um país em que ainda existe a obrigação social de se sair para beber com colegas ou chefes de trabalho, favorecendo a sua ocorrência. Ainda assim, ela é definida legalmente como “quase relação sexual forçada” ou um “quase-estupro”. O que também levanta questionamentos da impunidade sobre os casos de estupro conjugal ou envolvendo prostitutas e até mesmo para o fato de que a maioria dos acontecimentos se dá com agressores conhecidos da vítima, sendo ele seu parceiro, amigo, ou colega de trabalho. Isto para um país que até pouco tempo atrás determinava como estupro apenas casos em que havia a penetração vaginal pelo órgão sexual masculino, excluindo os próprios homens, meninos, transexuais, travestis e casos em que estupros se dão com a introdução de objetos nas partes íntimas das vítimas, independente de seu gênero e sua orientação sexual. Após uma mudança na lei, o estupro passou a incluir as relações orais e anais, ampliando o escopo das denúncias.
Como mãe de uma menina, por mais desconfortável que seja esse assunto, é assustador e inadmissível pensar que sua dignidade possa ser violada e sem perspectiva de que a justiça seja feita. É preciso que, mais do que mudanças nas leis, haja mudanças na forma de pensar da sociedade e das autoridades, para que se enfrente o estupro e o abuso sexual na sua origem, garantindo melhor acolhimento no momento da denúncia e combatendo a impunidade, o estigma contra as vítimas e, acima de tudo, toda uma cultura que desconsidera as vozes e o consentimento das mulheres e objetifica seus corpos em prol do prazer masculino, distorcido pela pornografia e o machismo. É preciso falar sobre isso e enfrentar a cultura do estupro de forma honesta, aberta e clara, longe dos tabus que ainda a permeiam.