Envelhecer no Japão.
Bom, quem me conhece sabe que estou beirando meus quarenta anos, dos quais pouco mais de dez tenho passado como imigrante no Japão, intercalados por uma volta ao Brasil, na qual voltei a exercer minha profissão de dentista e ouvia os relatos de meus pacientes, bem como os das pessoas fantásticas que aqui conheci, sobre suas experiências ao longo da vida. Não raro eu as ouvia dizer: “quem me dera eu soubesse de tudo isso quando eu era mais novo”, em um misto de nostalgia e arrependimento.
É inevitável pensar a essa altura do campeonato, sobre minhas projeções para a velhice, pesando minhas recordações e o futuro incerto, já que a vida foi mestre em me mostrar o quanto ela pode ser imprevisível e caprichosa, fugindo de todos os meus planos tão cuidadosamente elaborados. Mas algo de que não podemos fugir, a não ser pela morte, é envelhecer, coisa tão certa quanto o nascer e o pôr do sol, todos os dias. E o fato é que, na maioria das vezes, preferimos ignorar isso, julgando que se não formos eternamente jovens, pelo menos essa fase irá demorar a chegar.
Que engano! A verdade é que um dia somos jovens, intempestivos e afoitos para ganhar o mundo, no outro estamos olhando para trás nos certificando de que fizemos a vida valer a pena e que não carregamos arrependimentos desnecessários e pesados em nossas bagagens. E no meio disso tudo vai um oceano de sentimentos, realizações, fracassos, perdas, sacrifícios e conquistas, que mal cabem nos álbuns de fotografia empoeirados e na memória que, vez ou outra nos prega peças, mas no fim sempre sabe o que de fato importa e merece ser guardado.
Nesse saldo sentimos no corpo os efeitos do tempo, da negligência e dos abusos cometidos, através da saúde que se torna mais frágil, das doenças que se cronificam e se traduzem em inúmeros medicamentos, dando a exata dimensão do preço que pagamos pelas coisas que muitas vezes deixamos de enxergar enquanto éramos jovens. Também sentimos na alma, que pode manter o brilho no olhar, mesmo em idade avançada, quando vivemos de forma plena ou, apagar a nossa própria essência quando insistimos em não acreditar nos nossos sonhos e convicções.
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Hoje eu trabalho com pessoas com idade para serem meus pais, muitos com uma disposição de fazer inveja a mim e até mesmo a um garoto. Do alto da experiência de quem já superou os desafios de criar os filhos e muitas tragédias pessoais (não preciso mencionar os desastres causados por terremotos, tufões e vulcões no Japão), eu testemunho suas dificuldades desde coisas mais simples como ler sem óculos, ao nascimento dos netos e a necessidade de conciliar o próprio trabalho e ajudar os filhos nessa nova fase, as idas aos médicos e hospitais, seja para exames de rotina, biópsias por suspeita de câncer ou acidentes banais para um jovem, como um tombo e um escorregão, mas que para eles podem significar um osso trincado ou fraturado e uma longa recuperação se ausentando do trabalho.
Tudo isso se reflete em contratos desiguais de trabalho que, a pretexto de se premiar a produtividade (o velho valor da meritocracia) os levam a salários inferiores aos demais, ainda que façam o mesmo serviço. Eu me pergunto então onde está o mérito de uma sociedade que, em vez de agradecer e retribuir uma vida inteira dedicada ao seu desenvolvimento, pune os idosos pela fragilidade que o próprio sistema criou, com as demandas cada dia mais exigentes e desumanas do capitalismo e as leis de mercado, que tornam o ser humano mero recurso descartável de produção e consumo.
Não que eu não veja o desenvolvimento extraordinário do país e a sua riqueza tão admirados mundo afora, bem como a sua brava resiliência em se reconstruir a cada desastre natural e o respeito dedicado aos mais velhos. Sim, o Japão é extraordinário e é digno de tudo isso, mas a questão é: aonde isso leva a sua sociedade enquanto seres humanos, quando tanto de sua vida é dedicado ao trabalho em detrimento da convivência familiar e do fortalecimento das relações pessoais? Eu mesma tento equilibrar minhas cobranças internas pois, como mãe solo e única provedora da casa, não posso me dar ao luxo de trabalhar pouco para garantir uma vida minimamente confortável e, se possível, um futuro para minha filha, assegurando o desenvolvimento de suas potencialidades para que possa seguir o caminho de sua escolha.
Além do próprio peso do envelhecimento que, para nós mulheres, tem outra medida comparada aos homens, quando a sociedade nos cobra que sejamos eternamente jovens para que nos vejam belas e dignas de valor, onde até se permitir ter cabelos brancos e rugas de expressão é visto como um ato de transgressão. Basta ver o arsenal de cosméticos e procedimentos cirúrgicos cujo principal público-alvo é o feminino.
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E aqui entra mais uma questão muito importante e frequentemente ignorada por quem emigra: a aposentadoria. Aquilo que parecia ainda tão distante, muitas vezes se torna uma necessidade urgente e inadiável, mas infelizmente quase impossível para muitos. Seja porque não contribuíram com a previdência conforme deveriam, seja pelo valor que é irrisório e não garante o sustento na velhice (a mídia japonesa tem frequentemente alertado para o fato) ou simplesmente porque passou a vida toda com o orçamento restrito e não foi capaz de fazer investimentos para garantir o futuro, justamente nesse momento da vida em que mais se precisa de recursos financeiros para fazer frente a despesas médicas ou um cuidador, entre outros.
Infelizmente, a desigualdade salarial entre os gêneros muitas vezes me fez ouvir conselhos como: “você deveria encontrar um bom marido que lhe proporcione uma vida financeira estável e uma velhice segura”. Ainda que cheios de boas intenções e preocupação genuína, eu gostaria que antes a sociedade se empenhasse em proporcionar condições mais justas para as mulheres, para que nós não tenhamos que abrir mão de nossa independência (inclusive emocional) em prol de estabilidade e segurança e que, ainda que um dia eu venha a pensar em me casar novamente, que seja por amor e desejo verdadeiro de passar minha vida ao lado de alguém e não por conveniência.
Enfim, envelhecer deveria ser algo que apenas nos trouxesse sabedoria, orgulho de nossas conquistas, paz com nossas limitações e vontade de seguir crescendo e aprendendo até nosso último suspiro. E não algo negativo, indesejável e cheio de dores e dissabores. Transformar essa realidade depende não apenas de esforço e mérito pessoais, mas de mudar a mentalidade de todo um sistema, para que aprenda a enxergar além de peças e veja seres humanos e suas reais necessidades.