Eu, como a maioria das pessoas, cresci com uma visão romantizada da maternidade. Sim, aquela imagem da mãe sagrada, que se sacrifica por todos, que no dia dedicado a ela ganha presentes e é chamada de guerreira, cantada em verso e prosa sobre seus dons quase mágicos. Mas a vida acontece e junto com ela seus tombos, que nos ensinam nem que seja pela dor, a sermos mais fortes e melhores. Todos os planos que sempre tracei para mim foram demolidos inúmeras vezes em que me vi recomeçando do zero e sem saber que direção seguir (talvez para me mostrar que, por mais que eu tente controlar a vida, os caminhos que ela me reserva são imprevisíveis e têm muito mais a me acrescentar, em minha busca por crescimento pessoal, do que eu posso imaginar).
O divórcio e a maternidade solo
A maternidade, por si só, já é um imenso desafio sob diversos aspectos: físico, emocional, mental, de reorganização da rotina e da própria identidade. Some-se a isso a imigração internacional, o fim de um casamento abusivo, anos fora do mercado de trabalho e uma criança que mal havia completado dois anos. Uma única palavra definia a minha situação: caos. O mais absoluto caos.
Quando retornei ao Brasil, disposta a recuperar minha vida e quem eu era, corri atrás de me atualizar profissionalmente. Minha pós-graduação ampliou minha visão da realidade, transformou minha forma de pensar e mais do que isso, me trouxe de volta não quem eu era, mas uma versão muito melhor, mais consciente e madura.
Nesse caminho foi que descobri que aquela ideia de maternidade que eu tinha era puro mito. Que a realidade para além do que os filmes e comerciais nos mostram é a das portas fechadas no mercado de trabalho, de falta de apoio social na criação dos filhos, com a falta de vagas em creches e escolas em horários compatíveis à jornada de trabalho, da cobrança velada ou escancarada de que ainda assim sejamos aquela mãe perfeita e intocada que não se cansa, não sente medo nem fica doente, não sonha e não tem desejos, que segue a cartilha de um batalhão enfurecido de profissionais e palpiteiros dizendo a todo momento que se você não a cumprir ao pé da letra seu filho crescerá problemático, doente e infeliz.
Descobri também o peso do meu estado civil: hora me dizem que eu devo arranjar um “pai” pra minha filha (como se eu a houvesse feito sozinha por milagre e ela já não tivesse um). Porque uma mãe solteira não é respeitada, porque eu sou muito nova, porque minha filha precisa de uma figura masculina, porque filho único não é bom, porque, porque… E hora me dizem que mãe tem que se dar o respeito (olha o “rodízio de padrastos”) e eu, que sequer cheguei aos 40 anos, devo me condenar à solteirice eterna e ao celibato pois do contrário sou uma irresponsável e péssima mãe. Como se eu já não me preocupasse o tempo todo com a segurança de minha filha (caso a sociedade ainda não tenha percebido, os abusos acontecem em todos os lugares e pelas mãos das pessoas mais improváveis). Ensinar minha filha a reconhecer os perigos e se defender deles, bem como me cercar de cuidados com o nosso bem-estar, inclusive em novos relacionamentos, sempre estiveram entre as minhas prioridades. Mas esse eterno estado de vigilância e o sentimento de culpa cobram um preço alto e o desgaste emocional não é dos mais fáceis de se lidar.
De volta ao Japão
Então, eis que a vida me trouxe de volta ao Japão. E todas as dificuldades que mencionei anteriormente não ficaram para trás apenas porque deixei o país. Não porque eu quisesse trazê-las em minha bagagem, mas porque em muitos lugares no mundo a sociedade ainda não conseguiu entender o novo papel da mãe dentro dela. Mas confesso que aqui, pelo menos onde moro e trabalho, sofro muito menos preconceito do que no Brasil. E recebo mais apoio também, seja do governo ou das pessoas.
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Longe de ser um país perfeito, aqui também há questões como vagas em creches/escolas e seus horários ou o mercado de trabalho, que ainda são entraves para muitas mães e não apenas as solo, entre várias outras que precisam ser solucionadas se o governo de fato deseja incentivar o aumento da natalidade, reconhecidamente em decadência e com graves reflexos para a sociedade japonesa. Entretanto, aqui não apenas as mães, mas também os pais que criam seus filhos sozinhos têm desde assistência financeira a incentivos fiscais, como menores alíquotas de impostos e tarifas ou até sua isenção, a centros em que as crianças podem ficar até mais tarde, depois da escola ou mesmo nas férias e aos sábados (os chamados jidokan).
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Ainda assim, se eu não tivesse encontrado pessoas maravilhosas no caminho dispostas a me ajudar, seria muito difícil tocar o barco. Até pelo fato de que as facilidades que aqui existem não são tão simples de se obter e, verdade seja dita, não passam de auxílios (diferente do que muitos pensam, ninguém faz filho pra viver de assistência social, simplesmente porque isso é impossível). Minha vizinha japonesa cuida da minha filha para que eu possa trabalhar mais horas e garantir um salário razoável para nos manter, e meu chefe acreditou em mim e me deu a chance de estar novamente com minha filha. Essas pessoas mudaram por completo a minha visão sobre o japonês frio e indiferente.
Crianças adoecem com frequência principalmente quando mudam de país (tipos diversos de doenças que não existem ou são raras no país de origem são complicadores), sofrem com o stress da nova rotina e o choque cultural inclusive na alimentação, no clima diferente, na entrada na escola japonesa (que possui vários eventos que demandam a participação dos pais) além de feriados nos quais os jidokan não funcionam (sem mencionar situações como tufões e terremotos em que muitas vezes as aulas são suspensas). Recomeçar a vida em outro país envolve também questões burocráticas de documentos e por várias vezes, precisei me ausentar ou sair do trabalho mais cedo para resolvê-las, até porque se eu não o fizesse, ninguém faria em meu lugar. Tudo isso somam pontos negativos para a mãe solo, na hora de procurar emprego e no salário, que se ressente a cada hora a menos trabalhada. Eu mesma só fui aceita inicialmente em meu trabalho sob a condição de deixar minha filha aos cuidados do pai por pelo menos um ano, período no qual trabalhei como nunca para provar que era capaz de dar conta do serviço e de minha filha, e o quanto eles erraram em me afastar dela. Ela é a razão do meu viver e minha motivação para seguir lutando. E pensar que não faço isso apenas por nós, mas por cada mãe solo que teve portas fechadas por duvidarem de sua capacidade, para provar que não há pessoa mais determinada no mundo do que uma mãe defendendo sua cria.
Dê respeito, oportunidades e empatia às mães solo, pois queremos ser mães, não guerreiras.
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Adorei este artigo estão de parabêns! e muito bom! Vou indicar este conteudo para os meus amigos
Obrigada