Os efeitos da migração internacional sobre a saúde no Japão.
Após morar oito anos no Japão, voltei ao Brasil e decidi que, ao me atualizar profissionalmente, gostaria de usar a experiência que adquiri trabalhando no chão de fábrica e que me trouxe uma visão muito diferente da que possuia ao deixar o país. A rotina de longas jornadas, em trabalhos repetitivos e muitas vezes pesados, ou em condições que exigiam bastante do meu corpo (como temperaturas ambientes extremas), além da própria situação de estrangeira nas esferas pessoal, psicológica e cultural, enfim de ruptura com a realidade privilegiada que até então conhecia como classe média no Brasil, trouxeram-me um conhecimento que, apesar de descrito em livros, reportagens e artigos, só produz mudanças íntimas profundas, desde a forma de pensar à maneira de agir, se tiverem sido vividos pessoalmente.
Optei pela Odontologia do Trabalho que, mesmo sendo um ramo não tão novo ainda era muito desconhecido, inclusive entre a minha classe, mas que me permitiria utilizar toda a minha experiência e conhecimentos acadêmicos. Não poderia pensar em outro tema para minha monografia que não os impactos que a migração internacional provoca sobre aqueles que integram esse fluxo irrefreável de pessoas pelo globo, cujas fronteiras se encontram cada dia mais diluídas através do avanço das tecnologias, dos meios de transporte e de comunicação a despeito das tentativas dos diferentes governos em controlá-los com suas políticas de migração, em muitos casos cada vez mais rigorosas.
A escolha óbvia pela comunidade nikkey (descendentes de japoneses nascidos fora do Japão), não apenas pela minha própria experiência, mas pelo fato de este ser um dos grupos migratórios com fluxo já estabelecido há um bom par de anos na história recente, possuindo também características que, de uma certa forma, facilitam a obtenção de dados oficiais e portanto, mais confiáveis. Entre elas podemos citar a quase totalidade de migrações dentro dos parâmetros legais de visto e registros de entrada e saída do país, bem como o controle rigoroso do Japão sobre aqueles que lá adentram e vivem. Infelizmente essa é uma área que ainda recebe pouca atenção de pesquisas e eu mesma me deparei com a dificuldade de encontrar artigos que pudessem fundamentar meu trabalho, o que de uma certa forma era também prova irrefutável da necessidade de sua realização.
Diferente do que se possa observar em outras correntes migratórias, no caso dos nikkeys (e seus familiares, que os acompanham ao menos até a terceira geração, muitos sem descendência) a maioria ainda vem contratada para realizar trabalhos de baixa qualificação (muito embora com a consolidação da comunidade no Japão, outros setores estejam se abrindo), e o idioma ainda é um grave problema para a adaptação pois, por mais que possam existir facilidades como intérpretes em repartições públicas e hospitais ou a ajuda de um amigo fluente, nem sempre é possível contar com isso.
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As condições laborais muitas vezes precárias e até de moradia, em alguns casos também são fatores negativos sobre a saúde dos que emigram, que não raro sonham em fazer uma boa reserva financeira com diferentes objetivos que vão da casa ao negócio próprio, passando pelos estudos e criação dos filhos ou o retorno ao Brasil, e que acabam negligenciando os cuidados preventivos e até se arriscando com a automedicação, buscando conselhos de conhecidos por remédios vendidos sem prescrição médica nas farmácias, que muitas vezes não passam de paliativos com menor eficácia do que os receitados pelos profissionais, além de apresentarem custo relativamente alto por não serem adquiridos com a ajuda do seguro de saúde. Isso quando não se recusam a se inscrever no seguro devido ao custo, apesar da sua obrigatoriedade para aqueles que residem por mais de um ano no Japão.
O choque cultural também pode influenciar, tanto na dificuldade de adaptação alimentar, como na aceitação da forma de trabalhar dos japoneses e de seus tratamentos, o que acaba por gerar desconfiança e receio, podendo incorrer na negativa do imigrante em buscar atendimento ou a postergá-lo o máximo possível, podendo causar danos irremediáveis ou a cronificação de doenças, dificultando sua resolução e aumentando a complexidade do quadro. A rotina atribulada com sobrecarga de horas-extras e a dificuldade em faltar ao trabalho para realizar consultas, bem como a inacessibilidade para os que não contam com habilitação nem condução própria dependendo da região, são outros obstáculos que se somam a hábitos de higiene e autocuidado inapropriados, inclusive deletérios como o alcoolismo e outros tipos de vícios. O que nos leva a lembrar do efeito devastador que o isolamento social e as condições precárias de vida podem gerar no âmbito psíquico, de potencial incapacitante e cujas marcas podem ser carregadas por toda a sua existência.
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Em termos de idioma, os empecilhos nascem de questões simples como marcar a consulta, preencher o questionário médico, explicar os sintomas de forma adequada, compreender as orientações do profissional até mesmo o uso correto da medicação. A falha em qualquer uma dessas etapas pode ter consequências graves para a saúde. Se muitas vezes a comunicação na língua materna já é complicada, o que dizer em um dioma que não se entende mesmo em termos de conversação? Isso porque até os japoneses dizem sentir dificuldade em relatar e transmitir seus sintomas.
Em relação à saúde bucal fiquei surpresa ao descobrir que depois da gripe, a queixa mais comum do brasileiro imigrante no Japão era justamente a cárie. A predileção pelo dentista brasileiro também foi outro fator levantado, o que se refletia nos quadros graves que encontrava em alguns pacientes que aqui viveram, além da urgência na sua resolução pois estavam temporariamente no Brasil e em breve pretendiam emigrar novamente. O que nem sempre é possível dada a extensão dos danos e a necessidade de tratamentos de reabilitação oral longos, caros e complexos.
Crianças e adolescentes não escapam do potencial negativo da migração internacional sobre sua saúde, tendo como complicador o fato dos pais estarem imersos em rotinas de trabalho exaustivas, dificultando os cuidados médicos e no cotidiano. O mesmo se aplica às mulheres, em especial as gestantes, que demandam mais atenção, inclusive no que tange a saúde bucal.
Entretanto, há um aspecto positivo a ser considerado dentro desse contexto, quando o imigrante e sua família têm uma melhora no quadro socioeconômico, garantindo maior acessibilidade aos cuidados profissionais e a agentes preventivos como os instrumentos de higiene, bem como a uma nutrição adequada e melhor qualidade de vida comparado ao país de origem. Contudo, para que isso se observe são necessárias não apenas uma maior integração à sociedade local e a criação de uma rede de apoio para esse grupo, mas também a difusão de informações, políticas públicas dos países envolvidos no fluxo migratório que observem as necessidades específicas de cada grupo populacional, e um ambiente favorável inclusive no trabalho para que a saúde não seja relegada a segundo plano. Erros médicos existem em qualquer lugar do mundo e falhas no sistema de saúde idem, mas nada disso deveria impedir que as pessoas cuidem daquilo que têm de mais precioso e quem sabe assim, possam explorar de forma saudável e positiva todo o potencial da incrível e única experiência de viver em outro país.