O texto que vocês lerão agora não é mais do que uma visão muito pessoal da minha experiência no Japão e, portanto, não tem a pretensão de se tornar um porta-voz de outros descendentes de japoneses como eu (ou de qualquer outra nacionalidade), mas penso que ele poderá encontrar outras pessoas que se identifiquem com ele em algum ponto.
Mas por que eu decidi tocar nesse assunto? Acho que hoje, um dos grandes dilemas das pessoas da minha geração é saber definir sua própria identidade, em um mundo que teve suas fronteiras diluídas pela revolução da tecnologia nas comunicações (vide a Internet) e nos transportes, bem como em termos de comportamento, ideais, expectativas de vida enfim, uma nova realidade em que mulheres (e por que não dizer também homens?) procuram por um novo modelo, mais condizente com seus anseios e sonhos, muitos deles frutos várias batalhas travadas em nome do feminismo e da busca de igualdade de direitos. Um turbilhão de sentimentos e atitudes, que tentam encontrar um ponto de equilíbrio com a realidade de um mercado de trabalho cada vez mais acirrado e as exigências do cotidiano.
E no meio de tudo isso está você, um ser humano em construção. Perder-se não é sinônimo de fracasso, mas se você mergulhar fundo nessa questão, antes de sair se atropelando para atender às expectativas alheias, esta pode ser a melhor experiência da sua vida. E se isso calhar com a oportunidade de sair do país, só posso desejar-lhe sorte no processo e que vá de coração aberto em busca de seu crescimento e aprendizagem.
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Particularmente, enquanto descendente de japoneses de ambos os lados da família e com traços físicos característicos marcantes, mesmo não tendo recebido uma criação imersa na cultura japonesa como muitos outros, foi quase inevitável absorver alguns de seus aspectos. Sem mencionar que morei muitos anos no Nordeste do Brasil, em uma época em que não havia muitos de nós lá, evidenciando ainda mais a minha “diferença” em relação aos demais. O que acabou por me levar a sofrer bullying por parte de algumas pessoas para quem eu era a “japa” do grupo.
Ao longo dos anos, a sensação de estar deslocada a maior parte do tempo, começou a me fazer questionar minha própria identidade. Afinal, se os outros não me enxergavam como brasileira, mesmo tendo nascido e crescido no Brasil assim como meus pais e falando o mesmo idioma, então o que eu era? O que era preciso para ser reconhecida como tal? O que é ser brasileiro afinal?
Por muito tempo eu deixei de pensar nessa questão. Segui a minha vida mas, lá dentro, algo me dizia que ela não estava bem resolvida. E aí surgiu minha primeira oportunidade de vir ao Japão. Entre a curiosidade e a excitação da nova experiência, muitas coisas rolaram nesse período como bem sabem aqueles que já leram outras narrativas minhas aqui no BPM, mas talvez pelo fato de não falar quase nada do idioma e ter me relacionado quase exclusivamente com outros brasileiros, mais um tanto pela imaturidade, a verdade é que, em termos da minha identidade, eu não vi grandes avanços.
Ledo engano, pois na verdade ali estava se formando a minha bagagem para tudo o que venho descobrindo nesta segunda experiência no Japão. Um novo olhar, mais conhecimento agregado (inclusive no idioma), uma situação totalmente diferente (hoje trabalho apenas com japoneses e algumas vietnamitas e aqui na região quase não há brasileiros) além da maternidade solo, tudo isso tem me levado a um outro patamar de entendimento sobre quem eu sou e quem eu pretendo me tornar, livre dos rótulos impostos por outras pessoas, moldada por desafios diários e a conquista deles .
E é aí que entra o elemento cultural, chave para que eu pudesse responder meu antigo questionamento. Interagir com a comunidade local, trabalhar apenas com japoneses, muitos deles mais velhos, com idade para serem meus pais (e essa é uma das faces duras do Japão que mais adiante eu procurarei abordar: o envelhecimento da população, inclusive a de imigrantes brasileiros), tem me ensinado muito sobre a cultura do país e o porquê de muitas dúvidas e até de coisas que eu era contrária anos atrás. Essa autocrítica tem me feito rever muitos conceitos e perceber também o quanto a ignorância, que carregamos pela falta de conhecimento, pode nos limitar.
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Isso me trouxe uma paz de espírito que nunca senti antes, e talvez o melhor nome que posso dar para esse sentimento seja “pertencimento”. A sensação de finalmente me sentir acolhida, de familiaridade na forma de agir, de ver a vida, de pensar e de educar minha filha, me mostrou o quanto, dentro de mim, havia esse lado japonês tanto nos aspectos positivos quanto negativos. Mas também ressaltou toda a minha brasilidade naquilo que de fato em nada me reconheço como japonesa. Porque, afinal, respondendo à minha própria pergunta, ser brasileiro é antes de tudo ser a soma de várias culturas de imigrantes que aprenderam a conviver sob uma mesma nacionalidade, é a miscigenação.
E no fim, o entendimento de que uma vez imigrante, mesmo na qualidade de descendente de um, e aí certamente minha filha também poderá passar por isso, na medida em que ela se familiariza cada dia mais com os costumes e o idioma japoneses (a famosa aculturação) e até por isso faço questão de manter não apenas o português em nossas conversas e livros, mas participar de eventos da comunidade brasileira local até comer pratos típicos, entre outras coisas que a ajudem a manter os laços, pois é comum entre jovens da comunidade que aqui cresceram, a dificuldade de se verem como brasileiros, porém também não são vistos pelo Governo ou população como cidadãos japoneses, a menos que passem pelo processo de naturalização e abdiquem de sua cidadania brasileira, mesmo assim podendo ser discriminados pelos mais xenófobos…
Mas, voltando à questão: por outro lado você ganha um mundo de referências, uma visão mais ampla de si e daquilo que te cerca, mais consciência e compaixão, além da certeza de que a minha identidade quem define sou eu. E eu não poderia imaginar nada mais valioso para minha bagagem.