Dekassegui no Japão.
Era o começo dos anos 90. Eu havia acabado de terminar o segundo grau – hoje o ensino médio; o presidente Collor tinha assumido a presidência e o país estava vivendo uma nova década cheia de incertezas devido à política econômica do então novo governo. Mas claro, quando se tem 17 anos, nada disso importa; eu simplesmente não sabia o que fazer e tinha aquela musiquinha assombrosa do Legião Urbana, Química, na minha cabeça me pressionando o tempo todo: “Você tem que passar no vestibular!”
Foi aí que tive uma ideia. Vou para o Japão ganhar dinheiro em 1 ano e dar um tempo nessa paranoia de vestibular. Peraí, você disse 1, e não 25 anos. OMG! Sim, o tempo voa e cá estou nessa terrinha, definitivamente, junto com outros 175 mil e trálálá de brasileiros que aqui vivem e vieram não só para fugir do vestibular, mas por vários outros motivos.
Privilegiado pela reforma da lei de imigração em vigor desde junho de 1990, baseada na consanguinidade, esse movimento começou lentamente ainda nos anos 80 e teve o seu ̈boom no mesmo ano da reforma. Era o começo da era dekassegui – o significado real da palavra no Japão se refere a trabalhadores que saem da sua região de origem para trabalhar em outras. Os voos da Varig e outras como a Air France eram verdadeiros paus de arara aéreos. Vim em um grupo de mais de 30 pessoas (grupo considerado pequeno); nas malas, papel higiênico, feijão, panela de pressão, miojo (sim, miojo do Brasil para o Japão) e claro, um salame ou mortadela, mesmo.
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Chegávamos curiosos, cansados e assustados. A grande maioria não entendia o idioma – eu, por exemplo – e nem sabíamos o que aconteceria ao certo, logo ao desembarcar. A verdade é que éramos vendidos como gado por cabeça: as agências já se apossavam de nossos passaportes logo após o desembarque no país (ato ilegal), o qual só nos era devolvido mediante a quitação de valores absurdos pelo agenciamento e suas custas, que na época girava em torno de 3 a 4 mil dólares. Um detalhe: compravam dólares com nossos passaportes (lavagem de dinheiro) e pediam o reembolso do trecho de volta à revelia, sem o nosso conhecimento. Quando muitos, desesperados ou mesmo por motivo de doença e não adaptação, tentavam reembarcar, descobriam que a agência já tinha pedido e recebido o reembolso pelo cancelamento do trecho de volta.
Foram tempos difíceis; do outro lado do mundo, com uma alta dívida e a vergonha pelo possível fracasso somando-se à falta de informações, não tínhamos outra opção a não ser ficar a qualquer custo.
Aqueles que eram mera mão de obra temporária de baixo custo hoje são residentes; muitos realizaram aqui o sonho da casa própria e de formarem os filhos na faculdade, seja no Japão ou enviando o dinheiro daqui para custear os estudos de filhos no Brasil ou até no exterior. Aqueles que preferiram dar uma educação dentro dos padrões desse país e optaram por não matricular os filhos nas escolas brasileiras que por aqui existem, hoje podem desfrutar plenamente das várias oportunidades de trabalho e estudo em diversas áreas pelo fato de serem fluentes no idioma e no kanji, os ideogramas da escrita japonesa.
Esses filhos provavelmente não conhecerão os trabalhos de baixa qualificação aos quais se sujeitaram seus pais, trabalhos definidos pelos japoneses pela sigla 3 k: kitanai (sujo), kikken (perigoso) e kitsui (penoso).
O tempo passou e muitas histórias com diversos finais foram escritas por cada individuo dessa comunidade que hoje “canta e é feliz“.
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Atualmente o cenário já teve uma mudança considerável graças aos esforços de toda a comunidade. Cenas como essa, de japoneses cantando e tocando nossa MPB, samba e claro, muita bossa nova, já são bem mais comuns, além de japoneses aprendendo a língua portuguesa nas faculdades ou em cursos particulares; espaços como o Rio Tokyo Cafe que mistura café, lanchonete e museu da cultura brasileira fazem com que uma pequena cidade como Oizumi, quase que esquecida, fique conhecida e vire ponto turístico no país por ser a Brazilian Town.
Aos que resolveram fixar residência permanente por aqui fica a responsabilidade de deixar um legado tão belo e decente quanto o deixado por nossos antepassados que, um dia, fizeram o caminho inverso, formando a comunidade japonesa no Brasil, referência de honestidade e excelência nas áreas onde atuam seus descendentes.
13 Comments
Muito bom seu texto. Fala-se muito pouco sobre a realidade dos dekasseguis e sobre o quanto os sacrifícios valeram ou não a pena. Gostei muito da leitura.
Que bom que gostou do texto, obrigada! Realmente existe o mito no Brasil de que ” foi para o Japão ficou rico ” e só quem participou dessa longa caminhada sabe o quanto lutamos para conquistar o “status” de residente permanente e deixar registrado para as próximas gerações a trajetória dos dekasseguis. Um abraço mailakaarinarantanen.
Oi, adorei o seu relato. Quem diria, hein, 25 anos. Parece que foi ontem. Beijos. O mundo dá muitas voltas, quem sabe a gente ainda não se encontra de novo? Abraços.
Obrigada Lu Takahashi!! Sim o tempo passa muito rápido mas, olha só nós aqui nos encontrando nesse mundo virtual pelo menos rs! Grande abraço!
Oi, Alessandra! Fiquei emocionada com seu texto. Como descendente, ouvi muitas histórias de pessoas da minha família que resolveram tentar a sorte no Japão. Meus irmãos e minha mãe, inclusive. Um deles, que foi na mesma época e situação que você, ainda mora lá e, talvez, nunca volte a morar no Brasil. Há dois anos, tive a chance de reencontrá-lo e ver de perto o que é o Japão “de verdade”… Parabéns pelo texto corajoso e esclarecedor! Um grande abraço!
Olá Regina fico feliz que tenha gostado, apesar de já ter se passado 25 anos a lembrança da realidade daquela época permanece como se tivesse acontecido “ontem” mesmo. Que bom que você teve a oportunidade de reencontrar seu irmão por aqui. Continue acompanhando (e comentando) nossas matérias, estarei sempre trazendo um pouco da realidade do país em diversos aspectos. Um grande abraço!
Alessandra seja bem vinda ao BPM!
Sou de Suzano, uma cidade em SP que tem muito da cultura japonesa e imigrantes japoneses (assim como Mogi das Cruzes nossa cidade vizinha). O templo budista é maravilhoso e cresci nas Akimatsuri; Estudei inclusive em escola maternal japonesa!
Eu senti aquela saudade de casa agora simplesmente por ler suas palavras em japones e além de conhecer todas lembrei de amigos de infancia que assim que terminaram o colegio (as vezes nem isso) e partiram pra esse país tão longe… e foram muitos… muitos amigos! Até namorado perdi pro Japão, hahaha.
Muitos foram pra Nagoya, deve ser alguma agencia da minha cidade que mandavam muitos pra la, não sei. Mas desde pequena ouvia historias de tios e pais de conhecidos que tiveram esses problemas nos anos 90 de passaporte retido, trabalhos em situaçoes irregulares e passagem de volta cancelada sem concentimento da pessoa.
um grande beijo =)
Olá Jéssica obrigada por ler e comentar também! A agência que me trouxe era uma das várias de Mogi das Cruzes lembro que ia de ônibus do Paraná depois descia de trem até a cidade para fazer os trâmites para o visto, embarque e etc. numa das centenas de agência perto de um tipo de mercado municipal. Saimos em grupo em 2 ônibus fretados a caminho do Aeroporto de Guarulhos em uma manhã fria de uma praça onde tinha um igreja e muitos pombos. Essas coisas ficam gravadas mesmo, familiares chorando, longas e doloridas despedidas por todo lado , sinto muito pelo seu namorado também né, eu também deixei o meu rs.
Eu vim para Gunma mas, sim haviam grandes agências enviando em massa para Nagoya e Shizuoka também.
Você que já tem um certo conhecimento da cultura do país , continue acompanhando nossas matérias vou procurar trazer sempre informações atuais do nosso cotidiano.
Outro beijo para vc !
Oi Alessandra eu tb fui p o Japão, casei e fui tentar um futuro no Japão, adorei o Japão, apesar do trabalho pesado, em blocos de concreto, mas depois de 2anos e meio mudei p algo mais leve, mesmo porque engravidei, infelizmente meu ex marido torrou td nossas economias e td q ganhamos no Japão mesmo, voltei c uma mão na frente outra atrás e ainda com uma filha p carregar, graças a Deus tive meus pais que me ajudaram a me refazer, hj sou formada em Educação Física, pós graduada em acupuntura e estou conseguindo sobreviver apesar da Dilma estar me fazendo repensar em voltar p Japão rsss….bjss amiga
Pois é Marthinha o Japão nos fez chorar mas também nos fez sorrir, por exemplo essa sua filhota linda, a sua superação e o aprendizado, afinal aprendemos e nos fortalecemos principalmente nos momentos de dor amiga. Sucesso sempre e Gambatê (força)!
Oi Alessandra, minha amiga de colégio que depois de tanto tempo nos reencontramos Nascemos em uma época que vimos nossos pais lutarem muito pra adquirir algum bem material e com isso nos tornamos guerreiras . Você teve suas oportunidades e soube agarrá-las com unhas e dentes .Imagino que não tenha sido nada fácil deixar seu país , amigos ,familiares e encarar a vida dura com tão pouca idade . Hoje em dia as meninas dessa idade jamais iriam fazer o que você fez .Fico muito feliz que tenha conseguido se realizar levando uma vida digna , formando família e vencendo todas as dificuldades que não foram poucas .O que tenho pra te dizer é que lugar bom é onde ganhamos nosso dinheiro e podemos viver feliz, saudade a gente mata com uma uma visita .Fique por ai mesmo que aqui está de amargar kkkkkkkk. Bjs e muitas felicidades.
Excelente história que Deus a abençoe !!!
Amém e obrigada Andrea, fico feliz que tenha gostado em dezembro tem post novo chegando, espero que goste também. Um abraço!