No post de hoje, abordarei um tema que já tangenciei em textos passados no BPM: a depressão. Como já mencionei antes, fui e sou constantemente questionada: afinal, como alguém pode se deprimir no país mais feliz do mundo? Por esta razão – e também para tentar ajudar quem está passando por esta situação – falarei sobre os três principais aspectos da depressão na Dinamarca.
A solidão
Sejamos sinceros: a Dinamarca é um lugar solitário, de relações mais distantes e mais frias. Entre os estrangeiros que moram aqui, costuma-se dizer que os dinamarqueses recebem 5 fichas de amizade quando nascem e que distribuem todas antes de completarem 20 anos, não sobrando espaço para quem chegar mais tarde em suas vidas, salvo raros casos de suplência por motivo de fatalidade. A piada tem seu quê de verdade, pois não é fácil fazer amigos dinamarqueses, e as amizades aqui também seguem um padrão menos íntimo que o nosso. Desta maneira, muitos brasileiros que aqui aportam sentem-se sozinhos e até mesmo rejeitados pela hermética sociedade dinamarquesa, e vencer esta barreira exige muita paciência, tato e criatividade.
Se você está se sentindo sozinho por aqui, sugiro que use aplicativos como MeetUp para encontrar pessoas com interesses em comum, também dispostas a fazer amigos. Caso você não esteja trabalhando, recomendo fortemente um trabalho voluntário como ajudar em uma das lojas da Cruz Vermelha (Røde Kors), onde você conhecerá dinamarqueses e estrangeiros mais acolhedores e com mais tempo para dedicar a uma possível amizade. Existem também muitas comunidades no Facebook para estrangeiros, e diversos eventos gratuitos reunindo almas desterradas são constantemente anunciados por lá.
A perda da identidade
Apesar de muito se falar sobre o baixo nível de desemprego dos países nórdicos, a verdade é que conseguir trabalho por aqui sendo estrangeiro não é tarefa das mais fáceis, e mesmo profissionais altamente qualificados enfrentam dificuldades em conseguir seu lugar ao sol.
Ademais, a grande maioria dos felizardos que conseguiram emprego aqui tiveram que se adaptar e mudar de área, e estas duas situações acabam nos fazendo perder nossa identidade: de profissional de sucesso, passei a não ser aceita nem para garçonete, e quando finalmente consegui emprego, foi em uma área da qual eu não entendia bulhufas, e numa posição hierárquica apenas um degrau acima de uma planta decorativa (diga-se de passagem, a planta foi promovida e eu não). Some-se a isso a mudança de país, de hábitos e de língua, e não é difícil entender porque nós passamos a questionar quem somos.
Nossos referenciais de identidade ruem ou se encontram num hemisfério distante, e somos confrontados o tempo todo com novos padrões e desafios. Se no Brasil minhas amigas na casa dos 30 nem começaram a pensar em ter filhos, por aqui não ostentar crianças um ano após o casamento gera incômodos questionamentos acerca da sua felicidade conjugal. Se antes de vir pra Dinamarca eu me considerava vaidosa, uma vez aqui a data da minha última ida à manicure só pode ser descoberta com um teste de datação por carbono 14. Se antes eu tinha uma dieta equilibrada, hoje sinto que o dia foi um sucesso se não como algo com porco e batata em todas as refeições. Se antes eu era bem-disposta, aventureira e desbravadora, hoje uma mudança na rota do ônibus atrapalha meu dia.
Há dias nos quais não me reconheço, e nesses dias, que se transformam em semanas e meses, não posso contar com absolutamente nada que me remeta à minha vida pregressa, e à pessoa que eu gostava tanto de ser. Talvez meu único ritual de resgate neste sentido seja saborear os já famosos pães-de-queijo da Marcele, que também escreve para o BPM, acompanhados do meu saudoso chimarrão, enquanto escuto Vinícius de Moraes entrelaçado com Noel Guarany e rumino minhas múltiplas saudades, confessando pra mim mesma que até do programa Mais Você eu sinto falta, com seu papagaio-fantoche que se comunicava conosco no mesmo patamar cognitivo em que os Teletubbies dizem “oooooi”.
Contudo, é importante aceitar e fazer as pazes com a sua nova versão, sem comparações ou cobranças: a vida que você tinha antes era completamente diferente, e por isso mesmo, você é completamente diferente hoje. Não se julgue: tente pensar em todas as coisas que você aprendeu desde que saiu do Brasil, e o que mais você pode construir com esse conhecimento. Apesar de muitas de nós nos sentirmos estagnadas, a verdade é que estamos progredindo em muitas esferas, aprendendo novas línguas, entendendo uma nova cultura e se desafiando diariamente.
A exaustão
Uma semana após chegar na Dinamarca, eu mal conseguia sair da cama. Um mês depois, meu esporte favorito passou a ser revezamento de pijama. Passei a desmarcar encontros com meus amigos para simplesmente dormir, e os finais de semana não têm horas suficientes para curar o meu cansaço. Eu, que sempre fui uma pessoa irritantemente matinal, daquelas que acordava cantando, passei a precisar de um guindaste para me levantar, e incontáveis vezes cheguei em casa para desabar como uma jaca madura no sofá, acordando no dia seguinte. E logo eu, que sempre fui tão disposta!
Pois bem, eu tive um momento eureca ao ler o livro “Thinking, Fast and Slow”, de Daniel Kahneman. Nesta obra, o autor explica que nós temos dois sistemas cognitivos, um que ocupamos em 90 por cento do tempo para tarefas que estão no piloto automático como conversar com sua mãe, pedir uma pizza, lavar a louça, arrumar a cama, se vestir, dirigir, etc., e outro que usamos para “pensar” ativamente no resto do tempo, como quando solucionamos uma equação, aprendemos a tocar um instrumento novo, escrevemos um texto complexo ou falamos outra língua.
Enquanto o primeiro sistema tem baixa manutenção e funciona literalmente “sem pensar”, o outro exige manutenção, esforço, concentração e energia, e se a esmagadora maioria dos mortais usa este segundo sistema limitadamente em seu dia-a-dia, nós, os imigrantes, “pensamos” o tempo todo: falamos outras línguas o dia inteiro, temos que interpretar uma cultura diferente a todo o momento, e mesmo ligar para o tele-pizza passa a ser uma tarefa hercúlea. Assim, não é de se admirar que estejamos sempre exaustos, já que nossa mente está trabalhando a todo vapor o tempo todo, decodificando novos sinais e sistemas com os quais não estamos acostumados.
A boa notícia é que este processo se torna menos cansativo com o passar do tempo, pois automatizamos comportamentos e tarefas, e assim os delegamos ao primeiro e preguiçoso sistema cognitivo. É importante reconhecer este processo e aceitar que é normal se sentir completamente esgotado quando tudo é novo. Contudo, é também importante estar atento e consultar seu médico, pois a fadiga pode estar associada a outros problemas de saúde.
Pois bem, queridos leitores, espero que este texto ajude aqueles que estão passando por fases não tão encantadoras na terra dos contos de fadas, e que em breve o verão do hemisfério norte dê as caras e ilumine nossos tantos dias lúgubres neste recanto do mundo. Acima de tudo, lembrem-se de que a jornada de cada um de nós é única, e como diz uma grande amiga minha, “mar calmo nunca fez bom marinheiro”: superar estes obstáculos certamente nos fará mais fortes, e esse é um aprendizado que podemos carregar conosco para qualquer que seja nosso destino final.
Leia sobre como se mudar para a Dinamarca!
16 Comments
Parabens Camila, por mais um texto muito bem contextualizado, tocante e com boas tiradas. Um bj
Olá Lenninha,
Muito obrigada pelo seu comentário e pelos elogios. Espero que você continue seguindo os textos aqui no BPM 🙂 Beijos
Isso sem falar na depressão sazonal, durante o inverno pela falta de luz natural.
Oi Cristiano,
Muito obrigada pelo comentário. COncordo com você! Mal vejo a hora do verão chegar de verdade!
Beijos
Excelente! Retrata exactamente o que sinto. Acredito que acontece também aos Sul Europeus, tão latinos.
A 1 ano e 3 meses na Dinamarca, reconheço cada palavra. Só acho que o clima é também uma das razoes, principalmente para a malta do sul…
Beijinhos é obrigada…
Olá Helia,
Obrigada pelo seu comentário, e você tem toda a razão: o clima é um fator fundamental para a depressão aqui.
Beijos
Texto muito bem escrito e envolvente! Obrigada e beijos da fria Bélgica com muitos pontos em comum! ?
Oi Edilaine,
Origada pelo seu elogio! Então você vê similaridades nesse processo na Bélgica? Tem algum outro fator que você ache importante aí? Beijos
Excelente texto. Além de muito bem escrito, descreve com exímia perfeição como são os meus dias aqui na Alemanha.
Obrigada por compartilhar.
Olá Denise,
Muito obrigada! Adoraria saber como você está fazendo para superar estes desafios aí na Alemanha. Beijos
Oi Camila, achei seu texto muito interessante e também reconheço muitos pontos que mencionou. Abraços
Oi João,
Obrigada pelo comentário! Fico feliz que você tenha gostado do texto. Espero que ele ajude a superar os obstáculos do dia-a-dia. Abraços
Oi Camila, gostei do seu texto, mas comigo foi ao contrário, sempre fui muito bem disposta aqui. Mas depois de 22 anos de Suíça, hoje me sinto cançada, faz uns 3 anos que começei a sentir o peso da idade, do ar, do frio,……Quando vou p o Brasil ou outros lugares quentes, com outros ares, me sinto renovada. Acho que está chegando minha hora de voltar p terrinha, preciso de calor e luz. Um abraço.
Oi Renata, tudo bem?
Eu gostei muito de você ter partilhado esta outra perspectiva. É algo que precisamos ter em mente: nós mudamos, e aí precisamos reavaliar nossas escolhas. Eu concordo com você: muitos fatores passam a pesar com o passar do tempo. Você já tem outros destinos em vista? Abraços
Acredito que, o que buscamos da Dinamarca é o bom senso de fazer o certo pelo certo!
Imagina unirmos a fé, a alegria, a cultura, a riquesa natural e a simplicidade do povo brasileiro à maneira de administrar a política dinamarquesa?
Seríamos um exemplo de país.
Oi Adjane,
Muito obrigada pelo seu comentário!
Espero que possamos um dia construir esse país dos sonhos! Abraços