A mudança para outro país sempre traz surpresas. Podemos nos preparar exaustivamente, ler todos os verbetes da Wikipedia relacionados com o novo destino, participar de comunidades no Facebook e ler blogs de quem já mora lá, mas a verdade é que existe uma grande diferença entre saber e viver por si mesmo.
Feliz ou infelizmente, o verdadeiro conhecimento só é atingido quando vivemos de fato aquela realidade sobre a qual lemos e tentamos aprender, e esse novo cenário pode ser bem diferente do que imaginávamos.
Eu moro na Dinamarca e, antes de me mudar, pesquisei muito sobre o país. Sabia que era considerado o país mais feliz do mundo, o que, na minha opinião, se explica apenas pelo fato de que: a) os dinamarqueses ADORAM reclamar e b) os dinamarqueses praticam ironia como esporte nacional. Além disso, eu também sabia que a Dinamarca era uma campeã da igualdade de gênero, que era um país no qual o casamento homossexual há muito era reconhecido, que era um dos países nos quais as pessoas mais confiam umas nas outras, etc.
Por mais cética que eu fosse, sempre imaginei a Dinamarca como um país avançado, justo e igualitário. Contudo, ao vivenciar a realidade do país diariamente, certas questões nem tão dignas de mérito começaram a ficar evidentes, entre elas o preconceito racial que, lastimavelmente, é também parte desta sociedade.
Lembro de estar em uma festa com os amigos do meu marido, comentando que, infelizmente, eu não poderia exercer a advocacia na Dinamarca, pois o país apenas permite que aqueles que possuam graduação da Dinamarca o façam e, ao mesmo tempo, não permite que alguém “volte duas casas” na sua educação (se você já possui mestrado em Direito no Brasil, não poderá cursar a graduação em Direito na Dinamarca). Para minha surpresa, um dos amigos do meu marido expressou, em alto e bom tom, que isso deveria ser porque OBVIAMENTE a educação superior na Dinamarca é melhor do que no Brasil. O mais doloroso foi ouvir isso de uma criatura que não só desconhece a realidade do ensino superior em QUALQUER outro lugar do mundo além da Dinamarca, mas cujo QI lhe faria facilmente aceitar uma oferta para vender sua família em troca de um saco de feijões mágicos.
Pouco tempo depois, comecei a trabalhar como voluntária emu ma ONG contra discriminação racial, e a cada dia algo em mim morria um pouco, apenas para renascer minutos depois, na forma de indignação e até raiva. Por questões éticas, não posso reveler detalhes de muitos casos com os quais lidei: são vidas de pessoas que certamente não querem ser expostas. Entretanto, posso comentar alguns casos a título ilustrativo e, se o faço, é apenas para lançar um outro olhar a uma realidade por vezes ignorada.
Um dia, cheguei na ONG e, como de costume, fui conversar com meu chefe que, com o olhar fixo e paralisado, encarava o monitor do computador. Sentei-me ao lado dele e vi que ele olhava, incrédulo, fotos de um bebê natimorto. Em síntese, a mãe, de origem africana, teve seu visto de permanência negado porque a agência de imigração não reconhece a cerimônia tradicional na qual ela se casou como válida (apesar da carta da embaixada do seu país de origem atestando que aquilo era prática comum) e, grávida de oito meses, ela recebeu uma carta dizendo que deveria deixar a Dinamarca em três semanas, sob pena de deportação.
Devido ao choque da notícia, no dia seguinte ela deu entrada no hospital, onde se constatou o aborto espontâneo, que poderia ter sido evitado caso a agência de imigração cumprisse com seu dever legal de fornecer orientação e apenas a informasse que tudo se resolveria caso ela se casasse também na Dinamarca. Uma vida se perdeu, e provavelmente também se perdeu essa família, porque a agência de imigração dinamarquesa não parece possuir interesse em cumprir com seu dever legal de orientação para com uma mãe negra africana. Um jogador de futebol, obviamente, teria mais sorte.
Em outro episódio, um homem de origem iraniana estava com seu amigo em uma lanchonete, quando um dinamarquês embriagado adentra o estabelecimento e começa a agredir os dois. O homem de origem iraniana apenas impede que o agressor estrangule seu amigo, enquanto o agressor diz que os imigrantes são sujos, que eles vêm para cá para destruir tudo, etc. A polícia chega e, apesar de testemunhas afirmando que o agressor agiu sem motivo e que gritava insultos racistas, o resultado é uma multa para o homem de origem iraniana por violência mútua. Além disso, a polícia se negou a sequer investigar o incidente como um crime de ódio racial, decisão que foi confirmada pelo Ministério de Justiça dinamarquês.
O caso que mais me lembro, entretanto, não foi um dos que acompanhei, e sim um que me foi apresentado pelo meu chefe, em um recorte amarelado de jornal. Um menino de origem islâmica trabalhava entregando jornais na vizinhança e, na sua pausa para o almoço, se reúne com outro menino, seu amigo, também de origem islâmica. Os dois se sentam em um banco de praça quando, de repente, um carro estaciona, e um dinamarquês começa a insultá-los. Não satisfeito, o dinamarquês sai do carro e, portando um bastão de baseball, profere múltiplos golpes na cabeça do menino que entregava jornais, enquanto gritava insultos racistas. O outro menino corre e, enfim, consegue avisar a polícia do ocorrido. Quando os policiais encontram o agressor, ele estava escondido atrás de arbustos, e diz à polícia que ele não estava fugindo dos policiais, e sim se escondendo de “uns estrangeiros sujos” com quem ele teve uma briga. O menino que entregava jornais vem a falecer em virtude das lesões, e a polícia dinamarquesa afirma categoricamente que este não foi um crime com motivação racial, dando a pena mínima ao agressor.
A cada semana, mais e mais casos se acumulam nesta ONG, cujo auxílio financeiro foi cortado pelo governo dinamarquês que, evidentemente, não tem interesse em financiar a justiça, quando isto significa demonstrar que, como diria Shakespeare em Hamlet, há algo de podre no reino da Dinamarca.
Quando finalmente conseguimos que a Dinamarca seja condenada pelo Comitê da ONU contra a Discriminação Racial, o governo simplesmente se nega a pagar as devidas indenizações às vítimas. Sete condenações, nenhuma reparação.
É com pesar que constato que um país com tanto potencial ainda institucionaliza o racismo, ao ponto de o governo optar por sediar, em suas premissas, uma exposição de um “artista” condenado à prisão por racismo três vezes na Suécia, Dan Park. Deixarei que as imagens de tais “obras” falem por si, e sirvam de advertência quando pensamos nos países nórdicos como referência.
Lamentavelmente, o exemplo da Dinamarca, quando se trata do combate ao racismo, serve apenas como parâmetro a ser evitado.
18 Comments
Excelente texto, Camila!!!! É transparente a dedicação na escrita e no teu trabalho, bem como a dor/aprendizado que ele lhe causa. Não desistas da boa luta!!
Camila, excelente texto!! Fico triste de saber, como você falou, “que um país com tanto potencial ainda institucionaliza o racismo”. Isso me deixa assustada e até com medo de mudar-me para Dinamarca.
Olá Rafaella. Sou colunista e editora do BPM e também moro na Dinamarca. Seu medo é natural mas gostaria de lhe encorajar. Infelizmente a realidade da Europa e do mundo em geral tem sido essa volta de conceitos da direita ultraconservadora, xenófoba e racista, mas esse fenômeno é mundial e não exclusivo da Dinamarca. Arrisco-me, inclusive, a dizer que existe, sim, tudo isso que a Camila relatou, entretanto há igualmente gente consciente e solidária lutando contra isso no país. Venha sem medo! Aproveito para aconselhar a leitura dos meus textos falando sobre a Dinamarca, pode ser que você encontre a motivação que precisa!
Oi Rafaella 🙂 Que bom que você gostou do texto 🙂 Espero não ter te lhe assustado…no máximo, alertado 🙂 Como a Cris falou, isso é um problema mundial, mas foi também na Dinamarca onde encontrei as melhores oportunidades para mulheres, por exemplo, ou a melhor seguranca pública. Quando você vier, entre em contato comigo e terei prazer em lhe mostrar os muitos lados lindos daqui também 🙂
Eu também achei essa matéria negativa para quem não conhece a Dinamarca, apesar do país não saber lidar com o combate ao racismo. Essa matéria me fez lembrar que até aqui no Brasil, um país considerado amistoso para o mundo, também vemos notícias semelhantes de atos xenófobos contra imigrantes haitianos e africanos. Podemos concluir que a xenofobia e o racismo não são exclusivos de países desenvolvidos, mas em todo o mundo, infelizmente. Concordo com a Cristiane no comentário acima, que há pontos positivos no país europeu. A Dinamarca não é perfeita, como muitos imaginam, mas deve ter coisas boas, que podem até servir de exemplo para o Brasil. Não queria criticar sua matéria, foi só para complementar que isso é um fenômeno mundial, e até o Brasil não está imune a isso, ainda mais com a crise econômica e o crescimento do desemprego, que fazem com que (alguns) brasileiros olhem para os imigrantes como “intrusos” na nossa sociedade. Obrigado!
Olá Elias! Achei seu comentário muito válido 🙂 O propósito do texto foi justamente mostrar que todos os lugares do mundo, por mais “perfeitos” que possam parecer, enfrentam problemas semelhantes.
Oi Camila! Peço desculpas por ter me excedido no meu comentário. Que bom que você entendeu. Ao olhar os casos relatados por você, vejo que são realmente gravíssimos. Talvez essas injustiças tenham como intuito desestimular a imigração na Dinamarca, ainda mais agora, que há um fluxo muito grande de refugiados oriundos do Oriente Médio, e procuram países economicamente estáveis como a Dinamarca. Creio que isso não afete tanto os brasileiros, talvez pela nossa simpatia e cordialidade ímpar com os locais. Finalmente quero lhe parabenizar pelo seu trabalho humanitário, dando assistência jurídica para as vítimas de discriminação racial. Tak! 🙂
Triste, porém excelente texto. Cada Brasileiro que vive fora deveria parar de fingir que vive um conto de fadas em outro país e expor uma realidade que é mundial. O mundo está em colapso. O Brasil não é excessão quando o assunto é corrupção, preconceito, seja racial, social e etc… O Mundo está falindo! O planeta terra chora pelo mal uso e distribuição dos recursos naturais. Está certo que em muitos departamentos os países europeus estão á frente. Mas como eu costumo dizer, é meio óbvio que países pequenos e com grande fortuna estorquidas no passado de suas respectivas colonias, tenham a facilidade de se administrar melhor. A titulo de comparação a Holanda, onde morei por 5 meses por exemplo. tem pouco mais de 17 milhoes de habitantes e na extensão também pode se comparar ao estado do Rio de Janeiro. Alem de serem nações bem mais velhas. Levando isso em consideração, eles estão é muito mal. Em aspectos como mão de obra especializada são péssimos. Se eu for inumerar outros problemas aqui, não vai ter fim. O patriotismo orgulhoso de achar que uma nação é melhor que a outra, mesmo entre vizinhos, é evidente. uns se acham melhores do que os outros, e em se tratando de países de ”terceiro mundo” como nos classificam, falta poucos nos dizerem que ainda somos macacos que não completaram o processo de evolução. è isso que eles acham da gente. Enquanto eles mesmo, não sabem lidar com diferenças sociais, raciais, e o que eu me deixou bem pasmo é como a intolerância religiosa na europa de forma geral passa de opinião á atitudes rispidas num estalar de dedos. Fui criticados inumeras vezes por apenas dizer que acredito em Deus! Enfim, sou muito feliz por ter essa consciência de que os problemas do mundo não se resumem um país especifico. E fico feliz de ver que amigos também conseguem enxergar isso. Na minha opinião esse é o primeiro passo e unico caminho para grandes mudanças!
Concordo plenamente, Diego, e fico feliz em ver que compartilhamos a mesma visão de mundo. O importante é estar consciente de que todos os lugares têm seus problemas, e nem o reino de contos de fadas de H.C. Andersen escapa à regra.
As vezes temos a impressão de que o Mundo caminha de Ré. Parabéns pelas palavras
Obrigada, Edivaldo 🙂 O importante é fazer a nossa parte para seguir em frente 🙂
Camila, a minha mudança para Copenhagen foi feita consciente e já havia lido muita coisa sobre Dinamarca, estrangeiros aqui,etc, etc … Quando cheguei me senti muito preparada…. O que mais gostei do seu texto é que as pessoas têm que saber que nem tudo são flores e aqui há esses problemas que para nós brasileiros ( com outros tipos de problemas) soa estranho. Não troco a segurança daqui pela do Brasil… Mas tenho tido um pouco de dificuldade de lidar com essa forma dos dinamarqueses ( nem todos) lidar com o diferente. Eu sou muito envolvida com a causa animal, e a primeira coisa que fiz aqui foi buscar uma ONG para fazer trabalho voluntário … No entanto, não obtive resposta … Enfim… Aqui é bom, mas há problemas…
Nossa que triste esses relatos. A Dinamarca é um dos Países que estão na minha lista para poder morar, conhecer, turistar etc… Mas depois desses relatos me assustou saber que isso exista e o que é PIOR não tem justiça. Sou negro e não sei o que faria numa situação dessas vivendo em outro País. triste
De verdade Camila, a Dinamarca esta no meu coracao em todos os sentidos, mas o que me machuca muito é ver a xenofobia do pais, inclusive na familia ao qual pertenco. Eles nao sao declarados, mas sim, cultivam raiva dos refugiados, mas isso antropologicamente pode ser muito bem explicado, afinal a Dinamarca esta em um dos ultimos lugares para um pais preparado para a guerra, E nao digo em sentido de armamento, mas psicologicamente, os dinamarqueses sao um povo de paz, se sentem invadidos por refugiados e infelizmente as ondas de crimes tem aumentado bastante por conta disso. Nossa cidadezinha Fredericia que nunca foi violenta agora quase todos os dias ouco a sirene. Nao se explica e nem se justifica a xenofobia, mas como disse a Cris, esta por toda a Europa.
Alias, adoro seus textos. Abracos.
Oi Giselle, tudo bem?
Essas coisas também me machucam muito, e infelizmente a xenofobia é bem presente por aqui. Acho que temos uma visão diferente por termos nascido em um país multicultural. No Brasil, a gente sabe que não “perde” a nossa cultura, e que só ganha ao tentar entender e aprender com quem é diferente da gente. Aqui, muitos dinamarqueses têm medo de que os estrangeiros “destruam” a cultura dinamarquesa, mas a verdade é que, quanto mais acolhedor é um povo, mais os estrangeiros passam a admirar aquela cultura e aquele modo de vida.
Fico feliz que você tenha gostado do texto 🙂 Beijos
Ola Camila tudo bem adorei o seu texto,e somente quem vive a realidade de outro País ,pode falar com tanta precisão de como ė a vida em um País entre aspas considerado o melhor lugar pra viver,vivo em Espãnha a muitos anos e sempre tive que me impor pra ser respeitada pra que não me confundissem com mais uma que veio aquí pra levar uma vida fácil e sempre tive muita sorte,mais sempre como voce procureir estar bem informada e me acercar de boas pessoas,amei ler seu texto obrigada por compartir um abraço.
Muito triste seu texto, mas acho que vale mencionar que essa eh a “nova” Dinamarca. Morei na Alemanha antes da imigração começar, e viva na dinamarca. Dois países maravilhosa que tinha dezenas de amigos e memórias maravilhosas de pessoas extremamente receptivas e tolerantes. Voltei ano passado para passar um mês (15 dias em cada país) me arrependi pois destruiu minhas memórias. No passado nunca tinha me sentido tão segura quanto na Alemanha e Dinamarca, enquanto ano passo me senti com mais medo do que no Brasil. O jeito que a maioria dos muçulmanos te olham na rua te da um frio na espinha de que vai ser atacada ali mesmo em plena luz do dia. E a resposta para a crise da imigração foi uma população com ódio, raiva, intolerância, que fala abertamente que gostaria de fazer os imigrantes desaparecer ( ao ponto de se esquecer que imigrante eh uma coisa é refugiando eh outra completamente diferente). Minhas amigas relataram que tiveram conhecidos atacados por muçulmanos mas que se você for na polícia te chamam de intolerante e xenophobico e não te deixam prestar queixa, para manter os números de crimes cometidos por refugiados baixo. E com essas loucura toda e intolerância e ódio cresce por segundo. Via amigas com filhos dizendompara crianças que se vê rum muçulmano perto e para correr porque eles são perigosos. Quem ensina isso para uma criança? Uma pesso com medo pela vida da filha. E me dói mais saber que eh uma família que me acolheu de braços abertos simplesmente por serem meus vizinhos e me acharem muito sozinha quando cheguei na Alemanha. Criticar a formações estão reagindo eh fácil, mas analizar a mudança radical que ocorreu nos últimos anos e suas origem eh proibido pois será chamado de islamofobia, a palavra mais temida na Europa no momento. Enfim, um texto ótimo mas poderia ter dito as origens do que causou esse comportamento.
erro seu ao acreditar que a Dinamarca era um país perfeito, isso não existe! já eu fui agredida verbalmente por um espanhol em Copenhaga, os meus “amigos” latinos continuaram na sua, não fizeram caso nem acreditaram em mim, e valeu-me a defesa de uma casal Dinamarquês… más experiências quem não as tem?