Mudar de país significa mudar a nossa visão de mundo, desbravar novos horizontes, ser exposto(a) a diferentes padrões culturais, de comportamento e também estéticos. No texto deste mês, falarei um pouco sobre minha saga de amor e ódio com o Design dinamarquês, um estilo de design baseado no funcionalismo que se desenvolveu na Dinamarca na metade do século passado e que até hoje é objeto de adoração por aqui.
Inicio minha narrativa com uma confissão: eu nunca fui uma pessoa discreta. Minha mãe conta que, quando eu tinha três anos, vi um par de botas vermelhas de couro em uma loja e fiz uma cena digna de ato final operesco até convencer (ou coagir pela vergonha) minha amada progenitora a comprá-las para mim. As botas eram dois números maiores que meus diminutos pés e desgastei todo o solado antes delas chegarem a caber perfeitamente, mas o episódio ilustra a minha natureza de viúva Porcina precoce.
Os anos se passaram e eu continuei fiel à minha essência, que foi posteriormente traduzida na decoração da minha casa no Brasil em algo que poderia ser classificado como linha circense-folk-over de design: uma profusão de cores, uma junção sem fim de objetos únicos e de valor sentimental, misturando quadros irreverentes com a mobília herdada da tia-avó. Minha casa, mesmo que desconjuntada, tinha jeito de Brasil: colorida, alegre, diversa e despreocupada. Então, aos trinta anos, mudei-me para a Dinamarca, e minha odisseia de adaptação cultural incluiu me adaptar também a um novo padrão estético em termos de design de interiores, uma experiência dolorosamente divertida na qual aprendi muito não só sobre o Danish Design, mas também sobre a mentalidade dos dinamarqueses.
Na primeira vez em que fui visitar um casal de amigos aqui, fiquei surpresa e encantada com a organização e utilizacão inteligente do espaço, e com a aura de leveza e conforto do lugar: paredes brancas eram discretamente guarnecidas por gravuras em tons de cinza e pastel; móveis antigos e sólidos foram lixados para expor partes dos veios naturais da madeira ; um grande e aconchegante sofá cinza provia acomodação, complementado por cadeiras antigas acolchoadas com pelegos de ovelha ou mantas de lã; vasos com listras forneciam pontos de cor, complementando um conjunto de vasos mais neutros, e tudo isso era banhado por uma luz macia e delicada que emanava de diversas e belas luminárias.
Na quarta vez em que fui visitar amigos dinamarqueses, entretanto, a surpresa foi causada pela constatação de que a esmagadora marioria dos lares daqui são praticamente iguais: sempre o mesmo sofá cinza, amplo e confortável, acompanhado pelos mesmos móveis com cara rústica. Toda casa dinamarquesa tem também um exemplar dos vasos listrados Kähler ou dos discretos vasos Lyngby, iluminados pelas luminárias Ball de Frandsen, e deve existir um subsídio do governo para itens de decoração em tons de cinza e pastel. O que era encanto se transformou em decepção por não ver mais personalidade, criatividade e individualidade.
Contudo, aos poucos aprendi mais sobre a mentalidade dinamarquesa e percebi que, por trás do que eu inicialmente identificara como falta de criatividade e de personalidade, estava o senso de harmonia, de praticidade e, principalmente, a sombra onipresente da Lei de Jante, ditando que ninguém é melhor do que ninguém e que ter o mesmo que os outros era uma expressão dessa igualdade. Os dinamarqueses são um povo de muitas virtudes, mas em regra não se sentem confortáveis com o que é diferente. O senso de comunidade e de pertencimento a um grupo social é ensinado desde o jardim de infância, e o próprio sistema educacional tem dificuldades em lidar com a diversidade, razão pela qual, desde cedo, aprende-se a ser como os outros – e não melhor que os outros. Perde-se em diversidade, e minhas críticas à pasteurizada sociedade dinamarquesa virão em outra postagem, mas ganha-se muito em igualdade e em sentido de comunidade, refletindo-se em uma sociedade na qual colocar-se acima de alguém é mal-visto, o que se reflete também na estética assustadoramente semelhante de grande parte dos lares.
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Depois de ter atingido esta percepção, passei a prestar mais atenção nos elementos que compunham esta estética, e o encanto ressurgiu ao perceber o caráter único e inovador dos elementos de decoração e arquitetura que vieram a ser conhecidos como Danish Design, um estilo fortemente inspirado no funcionalismo. Segundo o Ministério das Relações Exteriores da Dinamarca, o Danish Design entrou em cena após a Segunda Guerra Mundial, quando uma série de circunstâncias levaram à chamada Idade de Ouro do mobiliário dinamarquês. O primeiro fator para o surgimento e sucesso do Danish Design foi a industrialização tardia do país, que significou a permanência histórica de uma tradição artesanal com elevados padrões de qualidade. Soma-se a isso o desejo do mundo de ver e experimentar algo novo depois de uma guerra que havia deixado grande parte da Europa em ruínas, um sentimento que foi atendido pelo mobiliário de madeira clara, com referências à natureza nórdica. Finalmente, o Danish Design contemplou a individualidade, uma tendência surgida na década de 1930, quando o arquiteto e crítico Poul Henningsen clamava pela liberdade, pelo respeito do indivíduo, por uma visão humanista e democrática, o que era bastante incomum nos países nórdicos naquele momento.
A soma destes elementos resultou na criação de peças que são consideradas ícones do design até os dias de hoje, como as cadeiras Egg e Swan, de Arne Jacobsen, as lâmpadas Artiskok e PH 5, de Poul Henningsen, a prataria de Georg Jensen e até a Ópera de Sydney, obra do arquiteto Jørn Utzon. O sucesso do Danish Design deu tamanho destaque aos profissionais dinamarqueses da área que uma das piadas que mais escutei por aqui é que a diferença entre Deus e um arquiteto dinamarquês é que Deus sabe que não é um arquiteto dinamarquês. Quanto a mim, minha casa aqui possui mais e mais elementos do Danish Design, pelo qual sou apaixonada, mas eles são (bem) temperados com as cores, tons e influências do Brasil.
5 Comments
Adorei Mila. Serei leitora fiel !!! Saudades. Bjs
Obrigada, Hilda!!! É uma honra tê-la como leitora 😀 Beijos para a família e saudades!
Oi, Camila! Estou morando em Copenhagen desde dezembro, vim acompanhando meu marido também brasileiro. Acabei comprando um sofá cinza … Rs
Oi, Camila! Adoro os seus textos e a diversidade de temas que você aborda, sempre de forma muito interessante. Sou estudante de design e gosto muito do design escandinavo. Escreve mais sobre esse tema!
Obrigada, Petra! Vou anotar a sugestão, e fico feliz em saber que você também curte os outros textos 🙂