No post passado, comecei a explicar como é possível um país com nove meses de inverno e um verão desapontadoramente chuvoso ser considerado a nação mais feliz do mundo, e falei como os dinamarqueses não criam expectativas irreais sobre seu sucesso profissional ou sobre relacionamentos.
Passemos, então, ao segundo mandamento da felicidade dinamarquesa: honrarás o “hygge”. Hygge, essa palavra que mais parece um soluço, é um conceito que já foi explicado pela Cristiane neste post aqui. Em síntese, “hygge” significa conforto, aconchego e ausência de qualquer incômodo. Hygge é aquela festa do pijama com os amigos mais queridos, comendo pizza e vendo comédias românticas dos anos 80. Hygge é tomar um café na cozinha da casa da avó, usando as meias quentinhas que ela tricotou. Hygge prescinde de luxo, de maquiagem ou de grandes arranjos, pois deve ser algo simples, acessível e tranquilo. E hygge é a essência da vida social na Dinamarca.
Em um país com um longo inverno, no qual ventos cortantes sopram tempestuosamente, crivando nossa alma e pele com uma miríade de agulhas geladas invisíveis, ultrapassando casacos, camadas de roupas e qualquer fresta entreaberta das casas, a população precisa se proteger das intempéries, tanto física como mentalmente. Para além da proteção, “hygge” traz em si o sentido de apoio, de partilha e de comunhão com o próximo, pois ninguém sobrevive aos invernos dinamarqueses sozinho: se antigamente se perdia a vida, hoje é a alma que se perde em uma solidão silenciosa de breu sem fim. As milhares de velas que os dinamarqueses acendem em suas casas buscam trazer esta tão ansiada sensação de conforto frente ao desamparo do inverno, e a luz suave dos castiçais ameniza não só a brancura gélida e os ângulos bruscos das casas, mas também a escuridão que assombra constantemente quem aqui vive. Hygge é mais que um conceito, é a criação de um espaço cujo acolhimento deve ser respeitado por todos de forma quase que sagrada.
E é justamente este ritual, que pode se dar em uma reunião de família com vinte pessoas, ou apenas entre você e um amigo em um café despretensioso, que reside mais uma das fundações da felicidade dos dinamarqueses: hygge é um momento de conforto, de estar em paz consigo mesmo, de estar perto do outro e, acima de tudo, de não perturbar esse instante com polêmicas ou conflitos.
Peço vênia aos leitores para lhes fazer uma pergunta: sinceramente, qual foi a última vez na qual vocês foram a um encontro social ou familiar no qual não se falou sobre problema algum, ou no qual nenhum assunto espinhoso foi trazido à tona? A tradicional família brasileira – perdoem-me antecipadamente pela generalização – regozija em comentar a desgraça alheia, em criar polêmica, desentendimento e mal-estar.
Sempre há um militante político que quer fazer a mesa de jantar de palanque, ignorando as convicções dos demais convivas e deleitando-se com o som de sua própria voz. Sempre há uma vítima do mundo, para quem a existência é um concatenar de sofrimentos que devem ser devidamente colocados em exibição para o público em geral, tal qual uma Guernica das emoções. Sempre há um inconveniente que coloca os outros em uma situação de desconforto ao fazer perguntas ou colocações desagradáveis:“lembra daquela vez que você teve incontinência urinária, fulano?”. Sempre há alguém que precisa ser o centro das atenções, alguém que traz uma polêmica para a mesa – “e o aborto, o que vocês acham?”; alguém que fala mal de alguém, alguém que só reclama, alguém que cobra os demais – “e aí, já conseguiu um emprego melhor?” – e alguém que sabiamente se ofereceu para lavar a louça, tentando fazer da pia um reduto de neutralidade, uma Suíça no caótico mundo das reuniões sociais brasileiras.
Tudo isso, meus caros e caras, inexiste quando se fala em hygge. Sim, todos temos problemas, mas as pessoas aqui se reúnem justamente para se confortarem mutuamente e para colocarem o pensamento em coisas boas. É óbvio que a gente sabe que fulana engordou, que Sicrano perdeu o emprego e que vivemos uma crise humanitária sem precedentes, mas o sentido do hygge é justamente ser um refúgio, um abrigo contra todas as coisas que nos dividem e separam e que, por isso mesmo, devem ser deixadas do lado de fora. Hygge é saber que o mundo e que a vida não são perfeitos, mas ao mesmo tempo se permitir ter um momento no qual tudo está em seu lugar, com conforto e sem esforço. Hygge é não pensar em divergências, mas sim no que nos faz convergir, pois os dinamarqueses sabem que, acima de tudo, o que nos une é a nossa humanidade, e é este conceito simples que o hygge busca resgatar. Sei que muitos brasileiros estranham o fato de os dinamarqueses evitarem conflitos a todo custo, e também não acho saudável colocar toda poeira debaixo do tapete, mas no fundo eles temem criar uma situação que seja justamente o oposto do hygge, ou seja, um cenário de discussão e separação.
Peço que vocês, meus leitores, imaginem-se em sentados confortavelmente em uma sala de estar iluminada por velas, com o fogo crepitando na lareira, envoltos em cobertores, enquanto neva lá fora. Imaginem que uma pessoa querida se aproxima com uma xícara de chá e com biscoitos quentinhos. Imaginem que toca uma música suave e nostálgica ao fundo, e que todos lhe acolhem com um sorriso, sem julgamentos ou cobranças, apenas felizes por estarem com você. Você pode falar ou pode ficar em silêncio. Pode ajudar na cozinha, ler um livro ou mesmo tirar uma soneca. Você está completamente confortável, em um ambiente completamente harmônico, sem discussões ou dramas. Agora responda-me: como você se sentiria nesse cenário?
Os problemas sempre existirão, mas a tradição do hygge nos permite que os deixemos de lado por alguns momentos, em prol de algo que nos aproxima, nos une e nos faz genuinamente felizes, por mais adversas que sejam as circunstâncias ou os ventos.
15 Comments
Por que os Dinamarqueses soluçam felizes? Sempre um belo texto de sutileza afiada.E eu aqui me regozijo e me desafio para perceber se foi Dorival Caymmi ou Vinicius de Morais quem inventou o hygge. É ou não uma tarde em Itapoã, Um acalanto esse conceito que parece soluço em história em quadrinho? Habemus hygge no estado de maior pobreza em termos absolutos do Brasil e em um conhecido pela grande desigualdade. Esse aconchego que redesenha o ambiente adverso deve estar presente em toda a parte em que a própria adversidade é uma prioridade na escolha de saídas solidárias. Bem diferente do efeito analgésico que a desgraça alheia tem nas conversas de uma certa classe de gente mesquinha. Que também há por toda parte, vamos lá. Tem duas linhas de formação da família brasileira. Elas se confundem muitas vezes mas uma parte de casa grande , outra da senzala. O acalanto, a comilança animada, a festa pertencem a uma; as brigas por herança, a inveja branca (branquíssima retinta) e o carro a ser tocado a cada 2 anos pertence a outra. As comparações são um artifício retórico provocativo e a Camila sabe usar. Mais que levar a sério a comparabilidade aparente. Até porque, prolema dos índices de medição de felicidade é que são tentativas de abstrair e unificar mensuravelmente concepções culturalmente diversas sobre o que é ser feliz. No Brasil, “estar feliz” e “estar satisfeito” são bem distintos entre os mais pobres. E muito sinônimos entre camadas altas e médias altas. Mas vale a provocação. E eu fico aqui pensando que os últimos dinamarqueses infelizes foram dizimados na cena final de Hamlet.
Querido Dario,
Muito obrigada pelo teu comentário, e por sublinhar essas duas linhas de formação da família brasileira. Eu sempre tive dificuldades em traduzir “hygge”, mas tu me relembraste da palavra acalanto, que reflete a mesma sensação buscada pela expressão nórdica. Beijos e saudades!
Oi Camila.. Sempre me assusto com essa impossibilidade de sobreviver ao inverno dinamarquês sozinha…
Ótimo texto como sempre!
Oi Karina, tudo bem?
Muito obrigada pelo seu comentário.
Entendo muito bem o seu sentimento, e sobreviver ao inverno aqui não é tarefa das mais fáceis, mas ajuda muito se você procurar atividades que mantenham a mente em outro lugar, seja organizando reuniões com os amigos ou fazendo novos amigos em outras atividades. De qualquer maneira, boa sorte pra nós, pois o verão já se despediu 🙂 Beijos
Adorei! parabens “clever girl” vou so esperar seus futuros artigos!
Muito obrigada, Janaina! Se você quiser, também pode dar uma olhada nos meus textos passados aqui no BPM. Beijos
Olá Camila! Seus textos sobre a Dinamarca são muito interessantes. Gosto muito dessa cultura cooperativista, de valorizar a união familiar e colaborar com o próximo, algo que realmente precisamos aprender com os dinamarqueses. Só quem já foi em algum país europeu consegue sentir a gentileza do povo local, em qualquer lugar. Fico impressionado também com o modo que os dinamarqueses levam uma atitude positiva, mesmo com os problemas do cotidiano. Realmente a felicidade está nas coisas mais simples e que estão ao nosso alcance. Muito obrigado por trazer um artigo que faz a gente refletir. Um abraço! 🙂
Olá Elias,
Muito obrigada pelo seu comentário. A proposta do BPM é justamente essa: trazer perspectivas diversas para nos fazer refletir. Acho o povo brasileiro muito gentil também, mas são culturas diversas: aqui dinamarquês não segura a porta e não te ajuda a carregar uma sacola, e quase nunca se oferecem para ajudar uma mãe com um carrinho de bebê, mas eles têm um profundo respeito pelo outro, e geralmente se sentem muito realizados com o que a vida oferece 🙂 abraços e até a próxima 🙂
Nossa que lindo!!!
“Os problemas sempre existirão, mas a tradição do hygge nos permite que os deixemos de lado por alguns momentos, em prol de algo que nos aproxima, nos une e nos faz genuinamente felizes, por mais adversas que sejam as circunstâncias ou os ventos.”
Oi Mylla 🙂 Fico feliz em saber que você gostou dos textos 🙂 Beijos
Estava lendo uma pequena e interessante reportagem da Economist sobre a Dinamarca e me lembrei do seu post sobre “hygge”. Destaco o trecho que mostra alguns dados sobre a percepção dos imigrantes sobre a vida na Dinamarca:
Jeppe Trolle Linnet, an anthropologist at the University of Southern Denmark, argues that hygge is not the great social leveller it appears. Danes dislike acknowledging class differences, but his research finds that the habits of hygge vary by income and social status. For some, hygge is a bottle of burgundy with soft jazz on the hi-fi; for others it is a can of beer while watching football on telly. Worse, different groups are uncomfortable with others’ interpretations of hygge. Mr Linnet calls it a “vehicle of social control”, involving “a negative stereotyping of social groups who are perceived as unable to create hygge”.
…A recent report on the quality of life for expatriates in 67 countries, compiled by an organisation called InterNations, bears this out. Denmark’s own natives may rank it top for happiness, but the immigrants in the survey ranked it 60th in terms of friendliness, 64th for being made to feel welcome, and 67th for the ease of finding friends. Finishing just ahead of Denmark on the finding-friends measure was Norway, the country from which the Danes imported the word hygge. If cultures are obsessed with the joys of relaxing with old friends, perhaps it is because they find it stressful to make new ones.
http://www.economist.com/news/europe/21707984-why-do-so-many-foreigners-want-copy-denmark-cocoa-candlelight
Oi João, muito obrigada pelo seu comentário. Achei a análise extremamente pertinente, e a dura realidade é que não é fácil se inserir aqui. Com ou sem hygge, a Dinamarca, de maneira geral, ainda é excludente.
Oi Camila, estou prestes á entrar em um programa de estágio remunerado para a Dinamarca e talvez por nunca ter saído sozinha do Brasil e ter só 22 anos, bate aquele medo. Seus textos estão me ajudando bastante a entender as pessoas dinamarquesas, os costumes, comidas e tudo. Li também os 5 motivos para não morar na Dinamarca (ficarei 12 meses), tem algo a mais que possa me aconselhar?
Oi Ana Paula, tudo bem? Obrigada pelo seu comentário! Parabéns pelo estágio! Onde você irá morar? Assim poderemos te orientar melhor. Uma ótima semana!
Olá Camila parabéns você escreve muito bem! Me interesso muito pelo seus posts. Abs Flavia