Dizem por aí que a única certeza da vida é a morte. Bem, para quem mora em outro país fora daquele de seu nascimento, há mais uma certeza: a de viver entre dois mundos – aquele de onde se vem e o novo, pra onde se veio.
Uma das coisas que ouvi ao sair do Brasil foi que a gente se torna mais ligado ao nosso país de origem quando está fora dele. Vou confessar pra vocês: eu nunca me senti a brasileira nata; sempre estive fora da casinha, como se diz. Alguns comportamentos típicos de brasileiros me irritam profundamente até hoje e, ao me mudar para a Dinamarca e começar a experimentar a vida desse lado do mundo, senti como se tivesse achado aquela peça do quebra-cabeça que estava há muito perdida e que era a última que faltava para completar o jogo.
Eu me sinto mais em casa aqui do que no Brasil em muitos aspectos. Nem todo mundo se sente dessa forma. Normalmente essa percepção de achar tudo lindo e melhor acontece nos primeiros meses ou anos após a mudança, quando a gente vive aquele caso de amor intenso com o novo país.
Depois de algum tempo morando em terras dinamarquesas, a rotina se assentou e, com ela, trouxe o seu peso. A rotina massacra qualquer relacionamento. No meu caso de amor com a Dinamarca também senti o baque de estar fora da minha zona de conforto. Aí começaram a se tornar reais outros aspectos que antes pareciam invisíveis ou irrelevantes.
De uma forma ou de outra, nesses momentos a gente começa a querer se reconectar com o Brasil. Queremos comer os sabores da nossa infância, queremos ouvir as expressões regionais, queremos música brasileira. É como a busca do elo perdido. Só que, estando fora há tantos anos e com tanta coisa que aconteceu durante esse tempo, o Brasil que me pariu se tornou um quase total desconhecido.
Sabe aquela música dos Titãs que canta: “não sou brasileiro, não sou estrangeiro – eu não sou de nenhum lugar, sou de lugar nenhum”? Pois é essa a sensação que dá quando a gente está num país que não é o nosso e, ao mesmo tempo, nosso país também não é mais nosso…
Ao sair do centro de São Paulo pra essa cidadezinha no meio do nada, como disse Bruce Dickinson no show do Iron Maiden em Herning, as mudanças foram brutais. Na nova vida, as facilidades e comodidades que eu tinha em São Paulo deixaram de existir, bem como opções gastronômicas que beiram o infinito e além, junto com os serviços 24 horas e transporte público em abundância, só para mencionar alguns.
O que mais pesou foi o idioma. Já falei sobre ele aqui no blogue. Gente, é um hor-ror viver num lugar sem poder se comunicar com as pessoas! Em Holstebro, onde vivo, há muita relutância das pessoas mais velhas em se comunicarem em inglês, e ainda há insegurança (ou falta de vontade) de alguns jovens em se dirigir a estranhos nesse idioma.
Talvez a parte mais complicada de morar noutro país é viver em outro idioma 24 horas por dia, trabalhando, amando e educando numa língua que não é a sua, com a qual não se tem intimidade nenhuma e que, apesar dos pesares, é o seu instrumento para prosseguir na nova vida. Nossa língua é um dos pilares da nossa identidade cultural e é quase uma tarefa hercúlea se fazer íntimo de uma língua diferente da que nascemos ouvindo.
Li um artigo que fala sobre como nos tornamos outra pessoa ao falar outro idioma. O idioma traz consigo toda a carga emocional e afetiva de alguém; é por isso que a maioria das pessoas se expressa melhor acerca de certos assuntos no seu idioma nativo, ainda que se considere fluente em outro idioma.
Na Dinamarca eu posso falar muito bem o idioma, posso fazer amigos locais ou me comunicar em nível de trabalho e social; contudo, sempre vai ficar aquele sentimento esquisito, aquela voz no fundinho da alma me relembrando de que eu não sou daqui, de fato, e nada do que eu faça – não importa o quão bem eu fale o idioma ou esteja integrada na sociedade – vai mudar o fato de que eu jamais serei uma pæredansk.
Entretanto esse fato, que acredito para muitos seria o motivo de um conflito pessoal interno interminável, pra mim, ser uma brasileira na Dinamarca é um mote de esperança pra me fazer lembrar das minhas raízes, dos meus ancestrais, de onde eu venho e amar e me orgulhar das minhas origens. De onde eu vim, onde estou e pra onde for são os fatores que determinam quem eu sou. Isso, por si só, é fascinante – pelo menos no meu ponto de vista!
Sinto-me bem integrada à sociedade dinamarquesa. Falo o idioma, tenho um trabalho, tenho amigos e família daqui, minha filha nasceu aqui e tem pai dinamarquês. Mesmo assim, neste lugar que escolhi como novo lar me falta algo que nunca poderá ser substituído. Sei que esse é um sentimento perene.
Não sei se concordo com o que o Tom Jobim disse sobre morar fora, porém a essa altura dos fatos eu consigo entender a que ele se refere. A identidade do que conhecemos mudou pra sempre. Nós mudamos pra sempre, a partir do momento em que tomamos a decisão de sair da nossa zona de conforto para abraçar o desconhecido. E o desconhecido, antes amedrontador, passa a ser o seu melhor amigo, quando você descobre que o que faz a gente ser humano é ter a possibilidade de lidar com as escolhas, de ter percepções emotivas e de, apesar do que nos falta, conseguirmos confiar nas asas que conquistamos e tentar voar livremente, sem medo da queda.
Estou plenamente feliz com as minhas escolhas na vida e cada dia de aprendizado é um dia apreciado por mim. Os dias nunca mais foram os mesmos e sei que jamais voltarão a sê-lo, e nesse espectro reside a beleza da vida. O mundo se tornou um caleidoscópio gigante por onde, a cada novo giro, uma figura nova, mais viva e colorida se apresenta.
Eu tento me manter ligada ao Brasil. O primeiro instrumento do qual faço uso é a palavra escrita. Escrever em português me ajuda a me lembrar que eu venho de uma terra diferente, que “tem palmeiras onde canta o sabiá” e que, pelo menos por enquanto, me identifica mundo afora pelo meu documento de viagem. Minha identidade cultural – idioma, lembranças e vivências da primeira infância, adolescência – é brasileira.
O Brasil, apesar de tudo o que vem acontecendo por lá, sobretudo na área política, ainda tem coisas bonitas que valem a pena ser cultivadas e relembradas. Eu quero que minha filha possa, um dia, receber e perceber essas referências de herança cultural como parte do meu legado.
8 Comments
Perfeita, brilhante e precisa como sempre, Cris. Beijos!
Obrigada, Ju! Beijos
Oi, Cristiane! Belo texto! Me identifiquei com ele, principalmente no que diz respeito às primeiras linhas: nos descobrimos brasileiros quando estamos fora. Passei por isso no meu ano de intercâmbio Irlanda, pois de repente comecei a gostar de escutar música sertaneja! Achei tão louco, misturou tanto com memórias de infância, me lembrei de cheiros que nunca mais havia sentido e foi um baque. Não suportei e voltei pra casa quando venceu o visto. Agora, quando cheguei em terras brasileiras, senti um pungente arrependimento por ter deixado a Ilha Esmeralda, mas feliz por rever a família e lugares íntimos. E já quero ir de novo, já sabendo que a saudade baterá logo nas primeiras semanas. Quem que entende uma coisa dessas? Abraços!
Oi Ligia, obrigada por ler e comentar. Quem é que entende o coração humano, né?
Sobre a saudade, eu confesso que não sinto saudade do Brasil em si: sinto saudade das memórias do que ali vivi. Acho que é diferente de sentir saudade das coisas do país, sabe…
Abraços e continue nos acompanhando!
Adorei o texto!! Tenho uma queda pela Dinamarca. Não sei se gostaria de morar aí, mas tenho muita vontade de conhecer.
Beijo, fica com Deus.
Oi Lorena. Obrigada por ler e comentar.
Morar no exterior, seja onde for, é um desafio. Nem todas as pessoas conseguem se adaptar, sobretudo quando falamos de um país tão adverso como é a Dinamarca. Entretanto, embora morar aqui seja um tanto desafiador sob diversos pontos de vista, é um país muito agradável para se visitar, sobretudo no verão. Faça seus planos e aproveite para ler meus textos sobre férias na Dinamarca: https://brasileiraspelomundo.com/dinamarca-verao-na-jutlandia-parte-1-20127339 e https://brasileiraspelomundo.com/dinamarca-verao-na-jutlandia-parte-2-16117628.
Abraço e continue nos acompanhando!
oi Cris,
cada pessoa vivencia cada fato de modo particular, né? só posso dizer é que eu nunca me senti brasileira, os anos que vivi lá sempre foram marcados pela briga contra o machismo, contra a corrupção, contra o jeitinho, o famoso jeitinho que justifica tudo que não é feito como deve. E nunca me senti parte daquele mundo, apesar de apaixonada pelas belezas naturais. Que felizmente existem em muitos países…
sou uma imigrante totalmente feliz, adoro a cultura que me acolheu e não tenho a mínima vontade de ir ao Brasil nem como turista, pois isto significa re-vestir a paranóia que se cola na gente desde que se aterrissa. Não consigo aceitar que viver com medo seja ‘normal’. Chega.
Concordo que cada um tem a sua bagagem e a partir de suas experiências constrói uma visão de mundo peculiar e individual.
Eu me sinto brasileira em muitos aspectos e em outros, sinto pena por vir de uma sociedade com características como o jeitinho e a corrupção. Foi difícil também lidar com a questão de ter de falar pelas entrelinhas – sou muito direta e franca e tenho dificuldade em me comunicar com rodeios e rapapés. Talvez por isso a Dinamarca foi uma boa surpresa pra mim. Compartilho com você a falta de vontade de ir ao Brasil, principalmente porque depois das reviravoltas políticas, o clima está muito tenso para pessoas como eu.
Obrigada por ler e comentar <3