Um dia desses li um texto bacana do psiquiatra Contardo Calligaris, que começava com a seguinte frase: prefiro ter uma vida interessante do que ser feliz. Na hora me identifiquei, afinal, será que é bom ser feliz?
Mas o que define a felicidade? Nessa louca vida contemporânea, ditada e editada ferozmente por todo tipo de mídia virtual, ser feliz está cada vez mais próximo ao conceito de “comercial de margarina”. Para quem não conhece essa expressão vintage lá vai: o marido maravilhoso, que surge sorrindo ao lado da mulher chique com cabelos esvoaçantes, na casa arrumada e cheirosa, com os filhos saltitando felizes pelos cantos.
São diversos os estereótipos de gente feliz que nos assombram todos os dias. A vida de todos parece sempre muito mais legal que a nossa e assim estamos à mercê da pressão de felicidade a qualquer custo. Mas isso é interessante?
Como uma viciada confessa do mundo virtual, observo que estamos cada vez mais nos editando e apagando o errado, o feio, o “interessante” da vida. Não apagamos somente nas fotos, mas no próprio jeito de existir.
A busca pela felicidade virou doença! A vida cotidiana nos bombardeia com essa eterna obrigação de ser feliz. E se não conseguimos por bem, vamos todos correndo ao psiquiatra, à igreja, ao guru, à ioga ou ao raio que nos parta em busca da tal bendita.
Nos esquecemos de que o ser humano é muito mais rico do que só o lado belo da vida. Os momentos cinzas e corriqueiros são também responsáveis pelo “interessante” em nossa existência.
E eis que esse papo todo me leva à Filadélfia, uma das grandes cidades norte-americanas, localizada entre o glamour cosmopolita de Nova Iorque e a perfeição rica e metódica de Washington D.C.
“Philly”, como é simpaticamente conhecida, mostrou para mim o significado da palavra interessante. Uma caminhada pela Broad Street, a principal avenida, apresenta um cenário diferente a cada quadra. O gueto negro e pobre, que no quarteirão seguinte fica cool e hipster, para ser careta e business em menos de 50 metros! A maior diversidade social possível, tudo meio junto e misturado.
A Filadélfia não esconde seu lado feio, ao contrário, o escancara! Os enormes grafites estão lá, chamando a atenção para prédios abandonados. Nas praças, de mato alto e sem jardins planejados, você descobre uma grade ‘arte noveau’, herança de um passado glorioso que continua ali, dividindo seu espaço com o sofá abandonado.
Essa bagunça toda faz da cidade algo vivo, pulsante e criativo. Sem belezas óbvias, somos obrigados a procurar e acabamos encontrando a delicadeza no meio do caos. Os clichês de um “comercial de margarina” passam longe. Tudo parece mais vivo e real e profundamente imperfeito, mais erros que acertos.
A vibração cultural é pulsante. Para os amantes das artes visuais, o Philadelphia Museum of Arts é um prato cheio. Dentro dele percebe-se uma clara diferença em relação aos museus “classudos” de DC, NY e Boston. A coleção é admirável, incluindo um dos trabalhos mais lindos de Paul Cézanne, que não precisa disputar a atenção do visitante com uma arquitetura deslumbrante e impecável. As paredes quase rústicas do museu criam um diálogo poderoso com as excepcionais obras exibidas.
Quem gosta de música e teatro certamente se encantará com Kimmel Center, uma instituição lindíssima com uma programação de alta qualidade, sem dever nada aos famosos concertos na Broadway em Nova Iorque.
Os fãs do famoso filme dos anos 80, Rocky Balboa, se divertem correndo pela escadaria em frente ao museu e, como recompensa, têm lá do alto a vista deslumbrante e vitoriosa que consagrou o boxeador.
A Filadélfia sofre de uma certa estagnação social, com alta taxa de desempregos e violência e uma segregação racial entre brancos e negros muito presente. Essas dificuldades acabam sendo o cenário perfeito para uma das cenas artísticas de rua mais importantes da América comprovando, mais uma vez, que alguns dos projetos mais criativos surgem da aridez dos problemas.
Impossível não se emocionar com os mosaicos criados ao longo de anos no sensacional Magic Gardens, resultado do trabalho incessante do artista visionário Isaiah Zagar. Com similaridades ao artista catalão Antoní Gaudi, Zagar construiu um mundo particular com labirintos de contas, vidros, espelhos e os mais diversos objetos. Visita obrigatória para quem gosta de arte.
Essa singularidade toda da Filadélfia, que assusta à primeira vista e encanta depois de um olhar aprofundado, está bem distante do tal conceito de felicidade que nos empurram goela abaixo. Não à toa, a cidade foi escolhida como o destino de viagem mais interessante dentro dos Estados Unidos em 2016, pela conceituadíssima editora independente de viagens Lonely Planet. O link para o site você encontra aqui.
Viajar sempre nos remete às nossas próprias experiências de vida, faço assim um paralelo entre “Philly”e minha história pessoal:
Deixei uma vida confortável nos arredores de São Paulo e o destino me empurrou para longe disso em um outro país, onde pouco a pouco vou me redescobrindo. Mudaram-se os valores e as perspectivas. Não quero mais a perfeição, quero a experiência! Quero a história para contar, que inclui também os dias de saudade, medo, frio e desespero.
Claro que a felicidade aparece e é recebida calorosamente, sendo até aprisionada nas fotos do meu Instagram. Mas creiam: uma foto não resume um dia, quanto mais uma vida!
Na estrada de volta da Filadélfia para D.C., minhas filhas me disseram: “nossa vida está mais difícil, tudo é muito novo e diferente… mas nossa vida está bem mais legal.”
Nos jogamos em uma aventura, em um mundo complexo, diversificado, feito sobretudo de diferenças. É dolorido muitas vezes, mas infinitamente mais interessante, tal qual como deve ser a vida, tal qual como são as ruas da Filadélfia.
1 Comment
OI Gabriela
Excelente texto ! Nesse mundo híper-moderno os conceitos se confundem. Bjs