Tudo começou há mais de 20 anos no Brasil. Estudando Letras no interior de São Paulo, eu sonhava em conhecer o mundo e algo me dizia que, uma vez que eu caísse no mundo, não voltaria mais à pátria. Dito e feito. Lá se foram 14 anos e muitas experiências. Vivi na Alemanha por 13 anos e acabei em Myanmar, por enquanto, por tempo indeterminado.
Quando saí do Brasil muita gente me dizia como eu era corajosa. Por deixar minha zona de conforto, ir morar longe da família, enfrentar o desconhecido. Nunca me senti como uma desbravadora, para mim sempre foi algo normal. Medo? Sim, e como! E este ciclo foi se repentindo, sempre que eu decidia tentar algo novo.
Da Europa para a Ásia
Mas não qualquer lugar na Ásia, e sim para Myanmar. Um dos países mais pobres e subdesenvolvidos do mundo. Recém saído de uma ditadura militar que durou longos 50 anos. Um país onde a rede de caixas eletrônicos foi instalada apenas em 2012. Onde os ônibus circulando pelas cidades grandes são sucatas dos anos 60 (apenas muito recentemente há ônibus novos circulando em Yangon, muitos dos quais com a carroceria fabricada no Brasil), onde a grande parte da população ainda não tem acesso a um banheiro decente, onde na maior e mais economicamente importante cidade do país, Yangon, ainda se vê canalização a céu aberto, às vezes, praticamente ao lado de um hotel 5 estrelas.
De novo, pessoas que encontrei, estrangeiros morando na Tailândia ou na Europa mas trabalhando com a Ásia me dizem que sou corajosa, que morar em Myanmar não é para qualquer um. Um colega espanhol (que trabalha na Europa) me disse “tienes las pelotas” para trabalhar e viver num lugar assim. Sem dúvida, a vida aqui, às vezes, é difícil. Tanto as coisas corriqueiras do dia a dia quanto as maiores, como ter que negociar com o governo ou ter que resolver algo com autoridades.
Desafios cotidianos
Das coisas menores, por exemplo, táxis: estrangeiros não usam transporte público já que o sistema é ruim, ônibus sequer circulam durante a noite/madrugada. Os taxistas mal falam ou nada falam inglês, não há taxímetro, a corrida tem que ser negociada e muitos, obviamente, quererem cobrar mais de estrangeiros. Com o passar do tempo isso irrita. Mesmo aplicativos como Uber e Grab não funcionam apropriadamente no país. Muitos taxistas não sabem seguir mapas/GPS, ligam para os clientes, mas a comunicação é muito difícil, já que não falam inglês.
Já ouvi relatos de estrangeiros que precisaram negociar com o governo em certas situações, e sempre falam: o processo é lento e complicado. Eu tive que enviar dinheiro ao Brasil e também passei uns perrengues para conseguir fazer a transação, coisa que na Alemanha levava, literalmente, 5 minutos (aqui leva 1 hora). O sistema de saúde não é bom, a maioria dos estrangeiros tem um “plano B” para qualquer ocorrência mais séria, como ir a países vizinhos como Tailândia ou Singapura. Até mesmo os birmaneses com condições financeiras suficientes vão regularmente a Bangkok para tratamentos médicos, existe toda uma indústria por trás disso, o chamado turismo médico.
Num país tão pobre, onde muitos vivem ainda na miséria, sem acesso a uma infraestrutura mínima parece arrogância se falar sobre uma “vida difícil” porque o taxista não fala inglês ou porque as coisas em geral são mais difíceis de se resolver aqui. Sim, eu estou ciente disso e realmente espero que ao longo dos anos as coisas possam se desenvolver de forma que as condições de vida da população local melhore. No entanto, isso não muda o fato de expatriados encontrarem muitas dificuldades para viver, trabalhar ou fazer negócios no país. Até mesmo os birmaneses se espantam com o fato de estrangeiros escolherem trabalhar aqui porque muitos deles gostariam de ir ao exterior.
E por que Myanmar, afinal?
A minha vontade de vivenciar algo muito diferente me trouxe aqui. Uma cultura completamente diferente da qual eu estava acostumada, mas nada completamente desconhecido para mim, já que eu havia estado no país e tinha contato com a cultura e costumes através de amigos. Mas visitar um país e vir para morar são coisas completamente diferentes. Francamente falando, os últimos anos na Alemanha eu estava achando tudo muito monótono. Talvez eu seja o tipo de pessoa que precisa mudar de ares de vez em quando. A decisão de vir para cá não foi das mas fáceis, apesar de ser eu algo que eu queria tanto, pois eu deixaria a nova zona de conforto que eu havia criado depois de tantos anos, viria sozinha para um país tão distante, deixaria um emprego fixo e seguro, mas que já não me satisfazia pessoalmente, enfim, deixaria toda a segurança social da Alemanha.
Até agora, aprendi muito, cresci pessoalmente, tive experiências pessoais intensas, conheci pessoas interessantes, mas também foi um período pessoal muito difícil.
Fim de um relacionamento de muitos anos, morte da minha mãe, até mesmo um novo emprego pelo qual estava empolgada acabou não dando certo; eu acabei com a sensação de que tudo que podia estava dando errado, um evento atrás do outro: relacionamento, perda pessoal, emprego.
Parecia uma pegadinha do universo, não podia ser real. Como se diz na Alemanha, eu me sentia como no filme errado. Quando o último emprego não deu certo, minha primeira reação foi: não tenho mais energias para lutar. Muita coisa ruim acontecendo sem dar uma trégua, até depois da morte da minha mãe eu voltei para cá para trabalhar (obviamente fui ao Brasil quando aconteceu), daí quando pensava que estava, aos poucos, conseguindo voltar à rotina, vem a vida com mais uma paulada. Era demais.
Pensei que na Alemanha pelo menos poderia ter uma semana de “folga”, não fazer ou pensar nada, só ter um tempo para mim, para chorar, planejar os próximos passos. No entanto, rapidamente percebi que queria muito ficar na Ásia. Quando me via de volta a Alemanha, me via infeliz. Eu imaginava que conseguiria reconstruir a vida ali, ter novos contatos e amigos, mas apesar de sentir falta da tranquilidade, da organização, da limpeza, de produtos que só encontro lá, apesar de tudo, quando me imaginava de volta, me imaginava infeliz, incompleta. Resolvi que queria ficar. Podia ser Myanmar, podia ser a Tailândia, tentei ambos. Num espaço de tempo de 1 mês, consegui um novo emprego em Yangon. Começar tudo de novo, novos colegas, nova casa. De algum lugar surgiu a energia para tentar de novo.
Viver no exterior é (muitas vezes) uma escolha, que traz consigo muitas coisas boas, nos abre horizontes, dá oportunidades de crescimento cultural e pessoal. Mas não é fácil.
Deixar para trás família e amigos, viver com o risco de que algo aconteça e você estar longe, são escolhas que fazemos. Mas não me arrependo e sigo aqui no meu “posto” em Myanmar, levando a vida, aproveitando o que posso e esperando o que o futuro me reserva.
5 Comments
Natalie, parabéns pela franqueza do seu texto! Eu me mudei para a Tanzânia pouco depois de perder meu emprego no Brasil, sei bem como é difícil a vida de expatriados em certas países, ainda mais quando estas mudanças acontecem em um momento de vulnerabilidade nas nossas vidas.
Tenho muita curiosidade em conhecer Myanmar, parabéns pela coragem de vivenciar esta experiência e muito sucesso para você!
Muito obrigada pelas palavras encorajadoras Camila! Você então sabe bem como é este período de transição, algumas escolhas não são fáceis. Espero que esteja gostando da vida na Tanzania, e visite Myanmar quando possa, é um país maravilhoso. Abraços!
Natalie, eu estive no Myanmar em 2013, e me comovi muito com a situação das pessoas do país. Alguns meses depois envieie mail a um senhor, que foi nosso guia em Bagan. Hoje recebi um e mail dele, pedindo ajuda pois ele está com serios problemas de saude. Gostaria de saber como posso enviar dinheiro ao myanmar e minha outra dúvida é no final do e mail aparece a data de novembro de 2017, mas eu recebi o e mail hoje….
Olá Cristiane. Realmente a situação no país é comovente, muitas pessoas vivem na pobreza. Estranho o email ter chegado apenas agora, normalmente a comunicação pela internet costuma funcionar, só é mais lenta. Eu recomendaria voce responder ao email e esperar a resposta. Até onde eu saiba a única alternativa para enviar dinheiro seria pela empresa Western Union. Voce pode dar uma pesquisada, em Myanmar eles tem agencias e muitas pessoas recebem dinheiro do exterior. Um abraço, Natalie.
Oi Natalie,
Tudo bem?
Adorei seus artigos. Já fui a Myanmar e estou voltando esse ano para fazer uma imersão budista. Será que você pode me mandar seu e-mail? Queria, se possível, que compartilhasse o contato do seu amigo que tem experiência com budismo (mencionou no texto).
Obrigado desde já,
Edu.