Frida Kahlo e a violência contra a mulher no México.
Para mim, escrever sobre o dia ou o mês da mulher, no México, é uma tarefa árdua. O dia é “comemorado” como em todos os outros países: as próprias mulheres trocando mensagens entre elas, enviando fotos floridas e fofinhas, frases feministas, vídeos sobre empoderamento e resiliência, parabéns pelo nosso dia, somos fortes e maravilhosas e toda esta besteirada sem fim. Quanto aos homens, alguns dizem parabéns pelo seu dia, alguns levam flores ou bombons, mas na verdade, é tudo uma grande hipocrisia.
O México é provavelmente o país mais machista da América Latina. Nas classes de baixa renda, a mulher rala como louca e a grande maioria sustenta os filhos sozinha e sem nenhum direito trabalhista (aqui, por exemplo, as empregadas domésticas não têm carteira assinada, não têm férias, fundo de garantia… NADA!). Fora as que apanham violentamente e não se separam, pois além do medo e dos problemas econômicos, a lei é tão tendenciosa que normalmente elas perdem tudo, inclusive os filhos, em qualquer tipo de batalha.
E, na classe alta, a própria mulher se coloca como um bibelô (achei que usar a palavra objeto seria muito agressivo). Aqui, o salto é altíssimo, o decote profundíssimo e a saia curtíssima (fora o detalhe das mulheres que vão à academia maquiadas e com cílios postiços, juro!). Sei que, vindo de uma adepta do All Star e do coque com piranha no cabelo, este comentário pode parecer despeito ou preconceito, mas não é. É fato. Também não estou dizendo que a vaidade é um defeito, ou prova de futilidade ou incompetência. Eu fui criada por uma das mulheres mais vaidosas do mundo, mas é também a mais guerreira e independente que eu conheço. Mas aqui a coisa é realmente diferente. É cultural. As mulheres se calam e há uma aceitação velada e a representação clara de papeis pré-determinados e de uma inferioridade assumida.
Por isso, a única coisa sobre qual posso escrever com admiração neste dia é, sem dúvida, Frida Kahlo.
Independente de sua arte e de seu papel intelectual e político na época em que viveu, a história de sua vida e a forma como enfrentou todas as coisas malucas que aconteceram com ela já representam toda a força e perseverança que está dentro de cada uma de nós, consideradas muito erroneamente (e Frida provou isto) o sexo frágil.
Para quem não conhece os detalhes da força, coragem e grandiosidade desta mulher, vai aqui um resuminho rápido da vida dela.
Bom, ela nasceu em 1907, portanto, temos que colocá-la dentro desta realidade. Se, hoje em dia, o México é o país mais machista que eu conheço, não consigo nem imaginar como era em 1907. Com 6 anos teve poliomielite. Ficou 9 meses na cama e acabou com uma perna bem mais curta e mais fina do que a outra e problemas de mobilidade. A partir daí, sua força e personalidade já começaram a se destacar. Sofria bullying e era chamada de “Frida perna de pau” na escola, mas não se incomodava e, para tentar superar suas limitações, praticava esportes, principalmente futebol, lutas e natação. Todos, naquela época, estritamente masculinos.
Aos 18 anos, sofreu um acidente de bonde e teve o corpo totalmente destruído. Fraturou coluna vertebral, clavícula, costelas, osso pélvico, pé, ombro, perna e, a coisa que mais me choca, teve uma barra de ferro atravessada por dentro do seu corpo, que entrou pelo quadril e saiu pela vagina. Sobreviver a isto, para mim, já é motivo para idolatria total!
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Começou a pintar por causa do acidente, quando não podia sair da cama. Casou com Diego Rivera, 20 anos mais velho e super mulherengo. Diego foi o grande amor de sua vida e merecedor de frases e poemas maravilhosos. Mas o casamento sempre foi muito polêmico e tumultuado.
Os dois faziam parte do partido comunista e da elite cultural e intelectual da época. Ele não se incomodava com o fato dela se relacionar com outras mulheres, mas não aceitava que dormisse com outros homens, mesmo enquanto a traía sem parar. Até que ela o pegou na cama com sua irmã mais nova, e mais querida (ela tinha três irmãs, mas esta, Cristina, era a mais próxima e a que cuidou dela até o fim da vida). Os dois se separaram e ela teve vários casos, com homens e mulheres. Inclusive com Trotsky, que estava exilado, com a mulher, na casa dela. A relação sempre conturbada com Diego continuava e os dois acabaram se casando outra vez e ficaram juntos até sua morte.
Frida engravidou várias vezes, mas seu corpo, tão prejudicado pelo acidente, não conseguiu completar nenhuma gravidez. Não poder ser mãe foi uma dor maior do que a do acidente e de todas as operações que fez ao longo da vida. Sua obra tem quadros chocantes e dolorosos sobre este tema.
Era uma mulher complexa, livre, decidida, incontrolável. Na única exposição individual que fez no México, sua saúde já estava tão debilitada que não podia sair da cama. Foi de ambulância e levou a cama num caminhão! Passou a tarde deitada, no meio da galeria, bebendo, cantando e celebrando sua arte e sua vida.
Com toda esta dor, este sofrimento e estes conflitos ela foi uma mulher guerreira muito, mas muito à frente de seu tempo. Enfrentou limitações físicas, enfrentou a sociedade, enfrentou dores horríveis, enfrentou um amor conturbado. Se expôs abertamente, em suas palavras e em sua pintura, e tem obras e poesias que são inspiradoras até hoje. Assumiu que era bissexual, assumiu que não podia ter filhos, assumiu as traições horríveis do marido. Defendeu sua posição política, defendeu seu povo, sua cultura e sua nação. Levou o México ao mundo todo, com suas roupas, suas atitudes, sua arte, suas cores.
Morreu com 47 anos e deixou um legado de força, luta e superação que vive até hoje, mas infelizmente não se manifesta nas mulheres mexicanas.
É realmente impressionante imaginar como ela conseguiu tudo isto no início do século passado. Acho que o fato de o pai dela ser alemão teve uma importância enorme em sua coragem para desafiar os costumes do país e da época. Na verdade, quando vejo grandes mulheres se destacando em culturas tão masculinas, sempre imagino como conseguiram amplificar sua voz. E, incrivelmente, muitas vezes é um homem quem as ajuda nesta empreitada. No caso de Frida, assim como no caso da Malala, por exemplo, este homem era o pai. Meninas que vivem em países onde a mulher não tem direitos, precisam de alguém para engrossar seu grito. E o homem mexicano abafa o grito, sufoca os ideais, diminui o valor, desmerece o esforço e, ainda, mete a mão, espanca mesmo!
Por isso, encerro este texto com a triste conclusão de que sim, só o México tem Frida Kahlo, mas no Dia Internacional da Mulher, até hoje, mais de 100 anos depois, infelizmente… o México só tem Frida Kahlo.