Morte é sempre um assunto delicado, independente de onde se está. É muito difícil estabelecer qualquer regra neste momento frágil mas, certamente saber o que vai acontecer e o que se espera que seja feito ajuda bastante. Como será, então, um funeral na Suíça?
Morando na Suíça conheci pessoas de diferentes nacionalidades e claro, alguns destes amigos perderam entes queridos nestes dez anos. Nunca soube direito como me comportar nestas situações. Já é difícil dar pêsames em português, imagine em inglês ou em francês. Na maioria das vezes dei um abraço apertado e disse que sentia muito pela perda. E só. Aprendi que deixei de fazer o que era esperado.
Recentemente, com a perda de uma pessoa próxima e querida, vivi de perto os bastidores da morte na Suíça. Sinceramente, me surpreendi positivamente com a profundidade e o simbolismo de todo o ritual.
Na Suíça o enterro acontece mais ou menos depois de uma semana do falecimento. Esta semana de luto é conveniente para a família preparar a cerimônia, escolher com calma todos os detalhes importantes e assegurar que as pessoas distantes consigam ter tempo para chegar.
O corpo, durante este período, fica em uma sala nada enorme, em um crematório que fica aberto nos horários comerciais. Na porta da sala, que permanece fechada, uma plaquinha identifica o nome do falecido. Não se vela o corpo como fazemos no Brasil. Quem quiser visitar simplesmente vai lá, muitas vezes sem ser visto pela família, sem o alvoroço do nosso velório. Algumas pessoas preferem ter um momento sozinho com o falecido. Entram lá sós e discretos, muitas vezes para abrir o coração e até bater um último papo.
Fui com dois membros da família e cada um entrou de uma vez. Enquanto cada um visitava, os outros circulavam no jardim, sem nenhuma pressão afinal, cada um tem seu próprio tempo e sua maneira de se expressar. Achei bonito o respeito à individualidade, algo bastante valorizado e praticado na Suíça.
Na minha vez de visitar o corpo, tive uma sensação de calma e serenidade que nunca tive em nenhum velório brasileiro. Acho que a luz baixa acalma e estar sozinha nesta hora é reconfortante. Encontrei o caixão no centro da pequena sala e notei no pé deste um arranjo de flores muito bonito, nada exagerado, bem coerente com a mentalidade suíça. Fiquei o tempo que quis ficar e me despedi do meu jeito, sem exageros, testemunhas e intromissões.
Como no Brasil, a família suíça também coloca um anúncio no jornal. Percebi como especial o fato de agradecer a cada médico e enfermeiro pela dedicação e carinho, além de mencionar cada um dos familiares próximos. A personalização do anúncio é ainda mais evidente com a colocação de uma foto do falecido. Bem pessoal e íntimo.
Outra curiosidade foi a escolha das músicas a serem tocadas na cerimônia. Até se conseguir o consenso da música para a cerimônia foram-se horas, onde foram revividas preferências e histórias divertidas vividas com a tal trilha sonora. A escolha acabou sendo um momento íntimo de descontração.
Mas o mais simbólico de tudo foi a visita ao pastor, que não era alguém ligado àquela família não muito religiosa. Os filhos foram juntos para o que pensavam ser uma reunião rápida. Nada. Passaram com aquele senhor horas. Contaram da vida de todos da família, além da personalidade, gostos, preferencias e fatos marcantes da vida do falecido. Foi quase como fazer uma biografia. Sentiram que aquele pastor realmente estava interessado nas informações, não era alguém simplesmente protocolar, o que foi revigorante.
A parte estranha da preparação foi escolher um local onde as pessoas iriam depois do enterro. Escolhemos um restaurante perto da estação de trem, já prevendo que as pessoas viriam de trem. Como seria no meio da tarde, pensamos em um menu simples e local: queijos, frios e uma salada de batata. E vinho, tinto e branco, claro. Escolhemos uma área afastada, onde seria colocada uma longa mesa. Durante a escolha conversamos com o Chef de cozinha e degustamos o vinho a ser servido afinal, uma pausa não faz mal a ninguém.
Um último detalhe, as flores. Foi escolhida uma coroa no formato de coração, de rosas vermelhas, com uma discreta faixa “De suas crianças”. Só. Simples e lindo.
Os dias que antecederam o enterro foram dias calmos, onde irmãos passaram o tempo juntos, resolvendo questões práticas, objetivas e emocionais. Eu, que nada falo de alemão, procurei ajuda-los fazendo jantares gostosos regados a bons vinhos. Nas nossas refeições histórias foram lembradas com carinho e modéstias a parte, acompanhadas de um sabor especial.
Até que chegou o dia do sepultamento.
Todos se vestiram de maneira formal. Curiosamente, ficamos prontos mais de uma hora de antecedência. Bem suíço. Pontualidade de sobra.
Fomos para o cemitério em silêncio. Chegamos com tempo de receber os que também silenciosamente chegavam. Notei que cada um trazia um envelope e o depositava em uma urna. Basicamente a família e os amigos realmente próximos atenderam a cerimônia. Qualidade é definitivamente mais que quantidade, também bem suíço.
Chegou então o pastor, que cumprimentou a família respeitosamente. Todos se colocaram em volta da pequena urna onde estavam as cinzas da cremação. Palavras e orações foram ditas até que fomos em cortejo até a cova da família, onde em silêncio a urna foi enterrada lentamente. Fomos então para a pequena capela do cemitério.
Na capela, ou templo, decorada somente com o coração de rosas vermelhas, aquele pastor não mais estranho leu um longo discurso, contando fatos e histórias ouvidas dos filhos. Arrancou dos presentes suspiros, choros e risadas. O discurso foi alegrado com as músicas escolhidas, melodias que sozinhas contavam histórias.
Saímos de lá e nos dirigimos a pé para o restaurante escolhido. Todos lá celebraram a vida vivida, lembraram passagens, compartilharam lembranças e emoções. O vinho correu solto, assim como o tempo. Aos poucos as pessoas foram embora mas um pequeno grupo boêmio foi ficando, embalado pela emoção do vinho. Saímos de lá a pé, emocionados com a despedida.
Abrimos e lemos juntos os carinhosos cartões. Para minha surpresa, alguns continham dinheiro, que me explicaram ser para contratar os serviços de um jardineiro durante o ano. Achei bonito e prático assegurar que ela teria flores por um bom tempo.
De volta para nossa casa, mais e mais cartões. Um enxurrada. Foi ai que percebi que um cartão de condolências tem que ser enviado. Faz parte da tradição e das obrigações sociais. As pessoas esperam e até se alegram com eles. Eu, por pura ignorância, senti que deixei de confortar tantos amigos.
Um mês depois, cada um destes cartões foi relido e carinhosamente respondido.
Invariavelmente, tanto na Suíça como no Brasil, a dor da perda precisa de tempo para poder finalmente virar saudades.
Esta experiência me mostrou que uma semana de luto é infinitamente longa e dolorosa mas que, ao mesmo tempo, permite fazer escolhas e homenagens pessoais distintas. Senti que quando tudo acabou ficou amparo e uma sensação de missão comprida no ar.
E a vida continua para os que ficam, como tem que continuar.