Goa no fim das monções.
Com o fim das monções, as apocalípticas chuvas em todo o sudeste asiático que duram mais ou menos de junho a outubro, é hora de tirar do papel o plano P, ou o plano Praia. O subcontinente indiano é cercado de água: a oeste da costa pelo Mar da Arábia, a sudeste pelo mar de Lakshadweep, leste, pelo deslumbrante mar de Andaman e a baía de Bengal, e finalmente, ao sul, pelo oceano Índico. Algo disso você já sabia pelas aulas ainda no ensino fundamental quando te disseram que os portugueses queriam porque queriam chegar à Índia e acabaram chegando mesmo no Brasil… e o resto, bem, o resto é história.
A primeira vez que ouvi falar em praia na Índia enquanto um destino turístico, para além das rotas de navegação dos patrícios, foi num programa da TV aberta sobre países e territórios lusófonos. Foi aí que soube da existência de um território costeiro que os portugueses colonizaram na Índia, chamado Goa, que séculos depois teria legado para o mundo a música trance. Naquele momento, final dos anos 1990 talvez, tudo isso era muito novo, eu sequer me recordo o que eu sabia ou pensava que sabia da Índia, mas certamente Índia e paraíso não pareciam caber tão facilmente na mesma sentença.
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Em um tweet de 140 caracteres pode-se dizer que os portugueses ficaram por lá por quatro séculos e saíram de lá depois que os britânicos saíram da Índia, que a influência portuguesa é enorme, seja pela religião, arquitetura, idioma e até culinária. Ampliando um pouco mais a descrição, Goa é o menor estado da Índia e limita ao norte com o Maharashtra e ao sul e leste com Karnataka. Desde o período pré-histórico até hoje, muitos passaram por lá, de mercadores a comerciantes, de monges a missionários. Pertenceu ainda a diferentes dinastias, impérios e sultanato, foi ocupada por povos tão diversos como portugueses, árabes e hippies e aparece também no Mahabarata, o épico hindu como Gomantak, uma palavra em sânscrito que pode significar tanto terra fértil, quanto terra dos deuses.
De fato o trecho “em se plantando, tudo dá”, da carta de Pero Vaz de Caminha poderia se aplicar perfeitamente a Goa. Chegando lá, ainda no finzinho das moções, ou seja, ainda em setembro -pode ser pelas low coasts indiana a tão só uma hora de Mumbai ou ainda de trem numas oito horinhas – o verde exuberante da vegetação irá encher os seus olhos, transbordando fertilidade.
Ali mesmo perto do aeroporto (20 km) é possível visitar as plantações de especiarias na região de Ponda, que fica mais ou menos no centro do estado. Com a ajuda de um guia, você vai descobrir que as diferentes pimentas vem da mesma planta em diferentes estados de maturação, vai poder cheirar uma folha de cardamomo e vai reconhecer também umas delícias da nossa própria terrinha, como o caju, e entender de onde vieram todas as sementes e pózinhos mágicos que adicionamos em processos alquímicos caseiros às nossas comidas.
Ainda nessa região central, você poderá visitar os casarões portugueses que abundam nessa área. Aliás, esse é um ótimo programa para fazer nesse período do ano em que invariavelmente chove bastante. A casa Braganza é talvez o mais esplendoroso exemplar de suntuosos palacetes que despontam imponentes em meio à paisagem selvática. Chegando lá, você é recebida por uma das herdeiras da família, que adora praticar seu português enquanto apresenta os cômodos da casa que data do século XVII. Porcelanas chinesas, espelhos belgas, lustres faustuosos, salões de baile, uma respeitável biblioteca, e no meio disso tudo, note os buraquinhos na parede de onde os moradores da casa se defendiam, posicionando ali suas espingardas.
Depois de conhecer a origem das especiarias, de se teletransportar pra um outro século na Casa Braganza, siga em direção direção sul. Os mercados no norte, como o Anjuna Market, em que os hippies chegaram há algumas décadas e de lá não saíram, estão fechados nessa época. Também estão fechados vários restaurantes das praias badaladas e não espere encontrar uma festa trance. A horda de russos ainda não chegou à praia Calangute e os beach huts, as características cabaninhas para se hospedar na praia ainda não foram erguidas. Todos os anos elas são desmontadas antes das moções e montadas no fim do período das chuvas, para o início da temporada.
No caminho se impressione com os terraços de arroz, as mulheres circulando em seus saris coloridíssimos e limpíssimos em contraste com o verde da paisagem, e quando chegar à praia de Agonda, você vai entender melhor por que setembro e por que o sul. Agonda é uma vilinha que parece uma vilinha da Bahia com uma igrejinha de arquitetura colonial portuguesa no centro, cercada de coqueiros por todos os lados, a praia estará semi deserta e as águas do mar Arábico irão te abraçar mornas como um líquido amniótico, embora não tão cristalinas como as águas do mar de Andaman.
De fato, se você digitar no google imagens “Agonda”, é possível que não fique impressionado, mas uns dias depois Agonda certamente irá te conquistar, especialmente se você ainda estiver tentando assimilar todas as informações por segundo que uma cidade como Mumbai te transmite.
Depois de longas caminhadas na praia, depois de umas voltas de scooter pela deslumbrante paisagem da região, depois de se deixar contagiar pelo ritmo tranquilo e relaxado do lugar, depois de comer um peixinho mirrado no restaurante da Fátima que insiste em aparecer no cardápio sob a alcunha de “shark” (tubarão), depois de tomar uma cerveja Kingfischer ou uma Tubourg no botequinho em frente à igrejinha (temperatura ambiente, já que a tecnologia da cerveja gelada ainda não chegou), você terá se rendido.
Aproveite para desbravar outras praias ainda mais desertas, como a Cola Beach. E vá de olhos bem abertos pra não perder os pavões que desfilam na trilha. Siga de moto para o forte português abandonado Cabo de Rama e ali mesmo em suas ruínas, perca o fôlego diante da praia selvagem de mesmo nome. Vá. Mas volte para Agonda…
Dicas úteis:
Como os beach huts ainda estão sendo erguidos nesse período, as opções de hospedagem são um tanto quanto reduzidas. O Dunhill Beach Resort tem quartos bem limpos, confortáveis a preços ainda mais razoáveis em função da baixa temporada. Fica a três minutos a pé do restaurante da Fátima, o point de Agonda. Você pode provar o prato típico vindaloo, se apreciar a pimenta na veia. Se não for o caso, um peixinho vai muito bem, assim como o butter chicken e o chicken curry (que são apimentados, claro, mas menos). O naan (pão) com queijo e alho é sempre um excelente acompanhamento. Outros restaurantes recomendáveis são o Manveer’s Kitchen (peça o chicken malai), também o restaurante da pousada Simrose que é ótimo pra passar a tarde na companhia de um dos livros que ficam nas estantes disponíveis para leitura.
O código de vestimenta dos indianos na praia não difere muito do código de vestimenta na fila do banco, portanto não se espante ao ver calças de alfaiataria e sapatos desfilando na areia (não virando sereia). Biquínis podem ser usados, claro, mas eu sugiro biquínis mais modestos. Apesar das semelhanças, não estamos na Bahia. É comum que os locais te encarem sem o menor constrangimento, portanto a minha segunda sugestão é frequentar praias que são frequentadas por estrangeiros. Juntos com nossos biquínis e bermudas (sungas também!) somos mais fortes. Agonda felizmente é uma dessa praias!