Mumbai ou Délhi?
Em algumas situações a construção da identidade, seja de uma cidade, de um país, de uma cidadania, e até mesmo de um gênero, se dá por meio de operação de negação. Assim, muitas vezes a identidade se dá menos pela afirmação daquilo que é, do que pela negação daquilo que não é.
Isso pode ser pouco divertido, para não dizer nem um pouco divertido quando falamos da diferença entre homens e mulheres, por exemplo, em que muitas vezes a identidade masculina é erguida sobre a negação do que é considerado feminino. Ou ainda quando para exaltar nosso país, precisamos rejeitar outro país, o que em casos mais extremos nos leva a guerras, destruição e morte.
Mas em outros momentos a comparação não passa de uma brincadeira, com um fundo de verdade, obviamente, ou um clichê. Uma frase famosa atribuída a Tom Jobim é aquela em que ele fala sobre morar nos Estados Unidos em oposição a morar no Brasil. Ele diz (ou teria dito): Morar nos Estados Unidos é bom, mas é uma merda. Morar no Brasil é uma merda, mas é bom.
Na coluna de outubro pretendo então me delongar sobre a oposição entre duas cidades na Índia: Délhi e Mumbai. São duas cidades com identidades bem definidas, entre tantas outras identidades que compõem a multifacetada Índia, mas são, principalmente, as duas maiores cidades do subcontinente. Mais que opostos, diria que são complementares.
Assim como entre os cariocas e os paulistas, existe uma rivalidade entre o pessoal de Mumbai e o pessoal de Délhi (falo assim porque sei que os de Mumbai são chamados mumbaikars, mas não sei como são chamados os de Délhi). Como vivo em Mumbai, estive muito brevemente em Délhi e tenho mais amigos e conhecidos mumbaikars, confesso que não poderia dizer exatamente como essa rivalidade se expressa nos dois lados. Em Mumbai, a mera menção a Délhi inspira umas reviradinhas de olhos e umas torcidinhas de nariz (umas mais discretas que outras). Portanto, vou me dedicar a falar um pouco sobre as diferenças.
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Parafraseando a linda canção “O Quereres”, do Caetano Veloso, onde Délhi é administração pública, Mumbai é administração de desejos, seja na maior indústria cinematográfica do mundo, seja no consumo disponível a uma classe média no coração financeiro do país. Para além de ser capital, há algo de Brasília em Délhi: em escala monumental, o imponente arco Índia Gate se conecta ao Rastrapati Bhavan, o palácio presidencial em estilo eduardiano barroco.
Mas para além dos edifícios da administração, há outros diálogos possíveis sendo travados entre as capitais brasileira e indiana, com as largas avenidas carentes de esquinas, as ausências humanas na paisagem vazia, entre sublime e desoladora, entre mais calma e assustadora, uma certa solidão que paira, seja na Avenida das Nações (Brasília), seja na Civil Lines, os bairros onde se enfileiram as embaixadas das mais óbvias e inesperadas nações do mundo.
Em Mumbai por sua vez, o neogótico do antigo enclave Britânico ao Sul da Cidade disputa com os arranha-céus que não cessam de despontar na paisagem do distrito dos negócios BKC. Que o boom econômico dos últimos anos – a Índia hoje ostenta índices de crescimento maiores que os da China – não nos engane. Desde o estabelecimento da East India Company ainda no século XVI, Mumbai mantém sua forte tradição mercantil, com mercadores engravatados enclausurados nos amplos escritórios e com mercadores que barganham os preços de relíquias que encerram em si histórias de além do mar, nos concorridos mercados da cidade.
Se quase tudo é vendível, e quase tudo é comprável (os vendedores daqui, mais do que em qualquer outro, vão demorar em admitir que não tem exatamente o que você procura, insistindo em mil outras opções alternativas), certamente tudo é exposto, tudo é visível como uma imensa vitrine a céu aberto. A vida aqui explode nas ruas. Mumbai é pura exterioridade. A solidão e a privacidade são artigos de luxo. Viver na cidade dos sonhos indiana exige perícia: uma breve distração pode levar ao choque com outros corpos que se proliferam no espaço público.
Assim, onde Délhi é Uttar Pradesh, um dos estados com maior presença muçulmana no país, Mumbai é Maharashtra, o caldeirão de crenças, línguas e soluções da Índia, em que os povos das mais diversas regiões do mundo migraram atraídos pela promessa de prosperidade e liberdade religiosa. Onde Délhi é o Qutb Minar, por muito tempo o minarete mais alto do mundo, construído sobre os pilares hinduístas, que foram ali deixados como ruínas justamente para manifestar a imposição dos muçulmanos sobre os hindus; Mumbai é Ilha de Elefanta, o conjunto de grutas talhadas nas rochas das montanhas, em que, à diferença do islamismo, os ídolos estão dispostos por toda a parte, e em especial, Shiva que impera absoluto, destruidor, mas que, apesar de tudo, mantém mundos.
Por um lado a ausência antropomórfica da mesquita Jama Masjid (a maior da Índia, construída em Delhi por Shah Jahan, o mesmo imperador mugal do Taj Mahal) desprovida de ídolos; e por outro lado, cavernas povoadas de Shiva em versão dançarino, asceta, em versão amálgama do homem e da mulher encarnam a ambivalência das duas cidades mais importantes da Índia.
Onde Délhi são sete cidades que permanecem em vestígios arqueológicos (a mais antiga data de 300 A.C.), Mumbai são sete ilhas, conectadas pelos movimentos e esforços dos homens e mulheres do mundo. Onde Délhi é Indraprastha, a cidade mítica dos Pandava uma das famílias que trava a luta mediada por Krishna no épico indiano, o Mahabharata; Mumbai é Boa Bahia (Bombaim ou Bombay) que os portugueses entregaram aos britânicos como dote de Catarina de Bragança.
Porque onde Delhi pesa a tradição, Mumbai é expectativa, é devir.